LAMPIÃO Nem herói, nem bandido: um simples brasileiro

 
 
 


Seu Elias e Seu Pedro são vizinhos em Olho D'Água do Casado. Militando em campos opostos nos tempos de Lampião, tornaram-se amigos e aliados.

Em Canindé do São Francisco, no sertão de Sergipe, a última semana de julho é dedicada à memória do cangaço. Mas, para a maior parte dos sertanejos da região, a saga de Lampião e Maria Bonita não aconteceu há 70 anos. Está acontecendo agora e sempre, na realidade quotidiana da vida brasileira. Para essa gente sofrida, somos um país de cangaceiros e “o cangaço hoje está mais vivo do que nunca, basta ver o que acontece na política”, como diz Seu Elias Marques, em Olho D’Água do Casado, um dos últimos remanescentes dos tempos do bando de Lampião

Texto e fotos de Luis Pellegrini

Seu Elias e Seu Pedro. Em Olho D’Água do Casado, sertão alagoano, região do Baixo São Francisco, todos os conhecem. São mitos vivos, remanescentes do cangaço, movimento misto de rebelião e banditismo que, entre as décadas de 1920 e 1930, impôs suas regras de sangue e violência na maior parte do Nordeste brasileiro.

Elias Marques, 95, mora ao lado de Pedro de Tercila, 96, na pracinha central de Olho D’Água. Seu Elias foi membro da volante policial que, no amanhecer de 28 de julho de 1938, atacou de surpresa o bando do cangaceiro Lampião, acampado na Grota do Angico, às margens do rio São Francisco, e o assassinou, junto a sua mulher Maria Bonita e outros nove integrantes do grupo. Seu Pedro, por seu lado, foi um dos principais “coiteiros” de Lampião, homem de confiança, encarregado de passar mensagens e fazer compras de víveres, remédios, roupas e munição. “Lampião gostava muito do Pedro”, diz rindo Elias, ao mesmo tempo em que passa o braço sobre os ombros do vizinho e posam para a fotografia.

Sentados num banco, à porta de sua casa em Olho D'Água do Casado, Seu Elias e eu batemos um longo papo sobre o cangaço no Brasil, o de ontem, e o de hoje.

O gesto de afeto obriga a uma mudança rápida no itinerário das perguntas: “Mas vocês não deveriam ser inimigos mortais?” Seu Elias não se fez de rogado: “Pelo contrário. Ficamos amigos há mais de 50 anos, quando percebemos que estávamos no mesmo barco: duas vítimas do jogo de poder entre os poderosos coronéis da época e os chefes do cangaço. Tínhamos 20 anos quando entrei na volante e Pedro se ligou a Lampião. Se eu não obedecesse às ordens do meu comandante seria fuzilado sem perdão. Se ele não fizesse o que Lampião mandava, seria castrado ou apanharia de relho até morrer”. Seu Pedro concorda com repetidos movimentos de cabeça. Cego de um olho e quase surdo, ele deixa Elias falar pelos dois.

Em Canindé do São Francisco, não distante de Olho D’Água, comemorava-se a Semana do Cangaço, entre 24 e 28 de julho. Há conferências, apresentação de trabalhos acadêmicos, visitas a lugares históricos. Nos bares e restaurantes as conversas giram em torno do tema cangaço. Falam como se Lampião e Maria Bonita tivessem morrido ontem, e não há mais de 70 anos.

Para Seu Elias, a explicação é simples: “O cangaço não é de ontem. É de hoje. Vocês não vêem televisão? A roubalheira, os poderosos usando e abusando do dinheiro público, o crime organizado deitando e rolando, e nós, do povo, sempre no meio, levando bala e sova de relho dos dois lados. Tudo continua do mesmo jeito, até pior. O Brasil sempre foi e continua sendo o país do cangaço”.

“Quer dizer que as volantes no tempo de Lampião eram tão violentas quanto os bandos de cangaceiros?”

“Violentas? Eram bestiais. O povo morria de medo das volantes. Certos oficiais judiavam mesmo das pessoas. A regra era assim: Quando estávamos no encalço dos cangaceiros, a gente pegava alguém na rua e perguntava se tinha visto Lampião passar por ali. Se o cara dissesse sim, apanhava de relho por não ter denunciado logo à polícia. Se dissesse não, apanhava do mesmo jeito porque com certeza estava mentindo”.

“E quem, da sua volante, atirou e matou Lampião?”

“Nenhum de nós. Quem matou Lampião não foi um homem, foi uma metralhadora. Tínhamos três quando chegamos no Angico. Todas elas dispararam ao mesmo tempo, era bala e fumaça pra todo lado. Foi um salve-se quem puder. Sem a metralhadora eu certamente não estaria aqui hoje para contar essa história”.

Na abertura da Semana do Cangaço, em Canindé, a platéia estava lotada de estudantes. A palestra era de Vera Ferreira, neta de Lampião. Sua mãe, Expedita, é filha única do cangaceiro com Maria Bonita. Com apenas 21 dias de vida, Expedita foi entregue a uma família de coiteiros e criada por eles. A vida no cangaço não admitia a presença de crianças.

Vera Ferreira, neta de Lampião e Maria Bonita, desenvolve um trabalho de resgate da estética das cangaceiras.

Dos quatro filhos de Expedita, diz-se que Vera é quem carrega o “sangue” da família. Jornalista e pesquisadora, é ela a portadora do “raio da celibrina”, expressão regional que sintetiza rebelião, revolta, desejo de justiça, pavio curto, caráter forte, inteligência, argúcia, cabra macha, “e uma pitada de loucura, que sem isso não se chega a lugar algum”. Seu projeto para a criação de um Memorial do Cangaço foi finalmente aceito pela Prefeitura de Canindé da Rocha. O prefeito Orlando Porto de Andrade já separou um bom terreno às margens do São Francisco e as obras começarão em breve. Enquanto o Memorial não sai, Vera Ferreira e sua amiga, a designer paraibana Germana de Araújo coordenam um belo projeto na cidade vizinha de Poço Redondo: o resgate da história do cangaço através do desenho. Elas reuniram algumas dezenas de mulheres de Poço Redondo e as transformaram em artesãs treinadas. Objetivo: a criação e produção em escala comercial dos bornais, acessórios e adereços usados pelas cangaceiras. Alugaram uma casa e é lá que centralizam as atividades, no clima de cooperativa de sertanejas artesãs. A primeira fornada de bornais já está pronta e será lançada dentro de dois meses. Atenção, butiques da moda: os bornais são lindos e vão estourar no mercado. O e-mail para quem quiser mais informações é: lampião.maria@gmail.com

Que futuro profissional teriam essas mulheres de Poço Redondo se não fosse a cooperativa?” Quem responde é Minga, uma das líderes do grupo:

“Futuro nenhum. Estaríamos condenadas a passar a vida pilotando o tanque e o fogão, como aconteceu com nossas mães e avós. Mas nós queremos é pilotar nossos próprios automóveis, e vamos chegar lá”. Não à toa, seis mulheres de Poço Redondo viraram cangaceiras do bando de Lampião…

A palestra de Vera Ferreira na abertura do evento foi curta, não durou mais de meia hora. Em compensação, a saraivada de perguntas que ela sofreu por parte dos estudantes durou mais de duas. Qual o nome correto de Lampião? Virgolino Ferreira da Silva, Virgolino com O. Por que ele virou cangaceiro? Vera desfia uma longa história de desavenças, vinganças e perseguições entre vizinhos que culminou no assassinato do pai de seu avô. Por que surgiu o cangaço? Por causa da impunidade, da falta de responsabilidade e compromisso social dos políticos, do momento sócio-cultural da época, e, sobretudo, “por causa da ignorância e lassidão de caráter do nosso povo, um povo que até hoje não faz valer seu voto, que vende seu voto em troca de uma dentadura ou uma camiseta”. A platéia aplaude, mas as pessoas trocam olhares significativos. Muitos ali vestiram a carapuça.

Na Grota do Angico, centenas de pessoas se reunem, todos os anos, no final do mês de julho, para participar da "Missa do Cangaço".

O evento maior da Semana do Cangaço em Canindé é a Missa do Cangaço, pela alma de Lampião, Maria Bonita e demais cangaceiros mortos, celebrada na Grota do Angico, na manhã de sábado, 28 de julho. Vera Ferreira, apesar de confirmar sua presença, não compareceu. Por causa de um processo que se arrasta na justiça de Canindé “por invasão de propriedade privada” ela estava proibida de por os pés no Angico, sob pena de receber uma pesada multa.

Mas, fora Vera Ferreira, no Angico estavam todos. Autoridades municipais e estaduais sergipanas e alagoanas, jornalistas, escritores e pesquisadores especializados no ciclo do cangaço, mais umas duas centenas de populares. Todos subiram a pé o quilômetro de ladeira íngreme que, por uma pista estreita, leva do atracadouro às margens do São Francisco até a Grota do Angico.

Maria do Socorro Feitosa Guimarães

Na "Missa do Cangaço", Dona Maria do Socorro Feitosa Guimarães, beata de Canindé, tomou o lugar do padre e rezou o terço.

Só que, na hora da missa, faltou o padre. Preferiu ficar em Poço Redondo rezando uma outra missa, também em sufrágio dos cangaceiros mortos. Uma pena, mas como no Nordeste há jeito para tudo, não seria por falta de padre que as almas dos cangaceiros seriam privadas de suas homenagens. Dona Maria do Socorro Feitosa Guimarães, beata ilustre de Canindé, abriu sua bolsa, puxou de lá um rosário e exclamou: “Não tem padre? Pois vamos rezar o terço”. E desfiou a ladainha de pais-nossos, ave-marias e salve-rainhas, com o coro dos presentes. Uma voz de homem comentou: “Por isso é que acho errado a Igreja não abrir o sacerdócio às mulheres”.

Terminado o rosário, desceram todos para a barranca do rio. No único restaurante instalado no local, uma peixada de surubim aguardava, regada a cerveja, suco de cajá e graviola, ao som de uma banda arretada de forró.

Nas mesas, entre garfadas de surubim e tira-gostos de pitu, as discussões sobre o cangaço continuaram. Washington Rodrigues Correa, sobrinho-neto de Pedro de Cândido – o coiteiro de Lampião que traiu o cangaceiro e revelou – forçado pelas milícias, dizem – o local onde ele e seu bando acampavam, na Grota do Angico – sentou-se com os jornalistas. Washington trabalhava no setor de turismo da Prefeitura de Canindé. Alguém lhe perguntou: “Washington, você é descendente do homem que traiu Lampião, e talvez mais do que ninguém carrega o peso dos dramas do cangaço. Diga lá, de coração: Lampião foi um herói ou um bandido?”

Sua resposta, digna de muita reflexão, não podia ser mais inquietante: “Lampião foi simplesmente um brasileiro”.

O povo de Canindé do São Francisco adora um forró, e qualquer espaço livre pode virar salão de baile num instante.

ROBIN WOOD DO SERTÃO

Lampião, ou Virgolino Ferreira da Silva, o rei do cangaço, nasceu em 1898 em Vila Bela, município de Serra Talhada, Pernambuco, e morreu assassinado pelas forças da ordem na Grota do Angico, Sergipe, em 1938. Passou metade dos seus quarenta anos no comando de seu bando de cangaceiros, com os quais percorreu os sertões de sete estados: Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Justiceiro e herói para alguns e bandido sanguinário para outros, ele e sua companheira Maria Bonita são um mito em todo o Nordeste brasileiro.

Embora seja o personagem mais conhecido da história do cangaço, Lampião e seu bando não foram os únicos nem os primeiros. Entre o final do século 19 e o começo do século 20 (início da República), no nordeste brasileiro surgiram vários grupos de homens armados conhecidos como cangaceiros. É consenso hoje entre os historiadores que tais grupos apareceram em função, principalmente, das péssimas condições sociais da região nordestina. O latifúndio, que concentrava terra e renda nas mãos dos fazendeiros, deixava a maioria da população à margem da sociedade.

Fenômeno social caracterizado por atitudes extremamente violentas tanto por parte dos cangaceiros quanto pelas volantes (destacamentos móveis da polícia militar) criadas para combate-los, o cangaço aterrorizou o sertão nordestino durante décadas. Organizados em bandos armados, os cangaceiros espalhavam o medo no sertão nordestino. Promoviam saques a fazendas, atacavam comboios e chegavam a seqüestrar fazendeiros para obtenção de resgates. Aqueles que respeitavam e acatavam as ordens dos cangaceiros não sofriam, pelo contrário, eram muitas vezes ajudados. Esta atitude fez com que os cangaceiros fossem respeitados e até mesmo admirados por parte da população da época. Contribuiu também para criar deles uma certa imagem de “heróis bandidos”, de Robin Woods do sertão.

"Canoa de tolda", uma das últimas que ainda singram as águas do Baixo São Francisco. Criada em época colonial, sua inspiração vem da Malásia, trazida pelos porgueses. Fotografada nas imediações do atracadouro que leva à Grota do Angico.

Os cangaceiros não moravam em locais fixos. Possuíam uma vida nômade, ou seja, viviam em movimento, indo de uma cidade para outra. Ao chegarem nas cidades pediam recursos e ajuda aos moradores locais. Aos que se recusavam a ajudar o bando, sobrava a violência.

Como não seguiam as leis estabelecidas pelo governo, eram perseguidos constantemente pelos policiais. Usavam roupas e chapéus de couro para protegerem os corpos, durante as fugas, da vegetação cheia de espinhos da caatinga. Além desse recurso da vestimenta, usavam todos os conhecimentos que possuíam sobre o território nordestino (fontes de água, ervas, tipos de solo e vegetação) para fugirem ou obterem esconderijos.

O bando de Lampião atuou pelo sertão nordestino durante as décadas de 1920 e 1930. Morreu numa emboscada armada por uma volante, junto com a mulher Maria Bonita e outros nove cangaceiros, em 29 de julho de 1938. Tiveram suas cabeças decepadas e expostas em locais públicos, pois o governo queria assustar e desestimular essa prática na região.

Depois do fim do bando de Lampião, os outros grupos de cangaceiros, já enfraquecidos, foram se desarticulando até terminarem de vez, no final da década de 1930. A neta do cangaceiro, Vera Ferreira, mantém um site oficial que contem inclusive o texto de uma longa entrevista concedida por Lampião em 1927: http://www.infonet.com.br/lampiao/

Originally posted 2010-04-28 18:26:29.

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