Os nativos norte-americanos reconheciam cinco identidades de gênero nas suas sociedades: homem, mulher, homens de dois espíritos, mulher de dois espíritos, transgênero. Todos eles considerados perfeitamente naturais e aceitáveis. As coisas mudaram depois da chegada dos missionários europeus. Mas as bases desse modo de ver as coisas persistem até os dias de hoje. Na foto acima, o casamento de dois homens dois espíritos Sioux contemporâneos.
Por: Luis Pellegrini
O tempora, o mores! (Oh tempos! Oh costumes!) exclamou na Roma do primeiro século antes de Cristo o pensador Marco Túlio Cícero quando quis criticar a visível decadência dos costumes da civilização romana. A frase passou para a história e passou a ser usada também para se referir à extrema relatividade e mutabilidade dos hábitos, costumes, crenças e valores morais no decorrer do tempo e do espaço das diferentes culturas ao redor do mundo.
A frase de Cícero se aplica perfeitamente hoje, no momento em que discussões sobre a questão da identidade de gênero e de comportamentos sexuais aparecem quase diariamente na mídia falada, escrita e televisiva.
Na medida em que nossa própria civilização redefine seus parâmetros relativos a essas questões, antropólogos, sociólogos e cientistas do comportamento se debruçam sobre outros modelos em busca de outras fórmulas e padrões comparativos.
Os indígenas não discriminavam por diversidade de gênero ou sexual
É assim que, no momento, muitos cientistas sociais voltam-se ao modelo desenvolvido pelas tribos indígenas da América do Norte, cujos padrões – libertários e curiosamente moderníssimos – permaneceram propositadamente esquecidos ao longo dos últimos séculos, por serem bastante avessos ao modelo puritano europeu que foi instalado naquele continente e a implantação de uma categoria rígida de um único espírito para cada indivíduo, segundo o ideal cristão trazido pelos conquistadores.
Para começar, as tribos indígenas da América do Norte não discriminavam por diversidade de gênero ou sexual. Se reconhecia inclusive que os indivíduos que apresentavam características comportamentais dos dois sexos tinham “um coração e dois espíritos”, e de modo geral essa cultura distinguia cinco gêneros diferentes.
As tribos mais importantes como os Navajo, os Cheyenne e os Cherokee utilizavam a expressão “gente de dois espíritos, e para elas simplesmente não existia um conjunto de regras que os homens e mulheres seriam obrigados a cumprir para que fossem considerados membros “normais” de sua tribo. Mais ainda, como relata o site Indian Country Today (http://indiancountrytodaymedianetwork.com/) – o mais importante veículo sobre questões indígenas dos Estados Unidos -, as pessoas que apresentavam características tanto “masculinas” quanto “femininas” eram consideradas como dotadas de atributos e dons especiais pela própria natureza e, portanto, capazes de entender os dois lados de um todo. Em todas as comunidades se reconheciam esses papeis de gênero, só que com distintos – porém muito parecidos – nomes: Mulher, homem, mulher de dois espíritos, homem de dois espíritos, e transgênero. Mulher e homem são categorias de indivíduos bem definidos, que possuem um único espírito que está de acordo com o seu corpo (um espírito de homem num corpo de homem, um espírito de mulher num corpo de mulher); o homem e a mulher de dois espíritos, como o próprio nome indica, possuem dois espíritos, um de homem e outro de mulher, num mesmo corpo; e, finalmente, o transgênero, a pessoa que tem o espírito trocado: um espírito de homem num corpo de mulher, um espírito de mulher num corpo de homem. As diferenças, portanto, são bem estabelecidas. Mas o fundamental a se destacar é que todas as cinco categorias são aceitadas como normais e naturais. E, no que diz respeito às relações afetivas e sexuais, todas as combinações são possíveis.
Aquele que se transformou
Indian Country Today conta que “os Navajo se referem aos “dois espíritos” como ‘Nádleehí’ (que significa “aquele que se transformou”); entre os Lakota existem os ‘Winkté’ (nome que se dá aos homens que têm o costume de se comportar como mulheres); para os Ojibwe, o ‘Niizh Manidoowag’ (literalmente traduzível por “dois espíritos”), enquanto que os Cheyenne se referiam ao ‘Hemaneh’ (“metade homem, metade mulher). E isso para nomear apenas algumas poucas culturas.
O propósito do conceito de “dois espíritos” era o de dar uma possível tradução branca ocidental a essa longa série de nomes e expressões, embora nem sempre essa prática revele de forma exata o real sentido dos termos das linguagens nativas. Por exemplo, no idioma Cherokee-Iroquês não existe maneira de traduzir o termo, mas esta tribo tem também termos de variação de gênero para nomear as “mulheres que se sentem como homens e vice versa”.
A cultura dos “dois espíritos” na América do Norte foi um dos primeiros costumes que os europeus trataram de destruir e fazer desaparecer da história. Um claro exemplo disso é o que declarou, em sua época, o artista norte-americano George Catlin, que achava que “essa tradição deve ser erradicada antes de chegar aos livros de história”.
O fenômeno não foi observado apenas na América do Norte. Existem registros de que monges católicos espanhóis destruíram também muitos códices astecas com o objetivo de erradicar os relatos e as crenças nativas tradicionais, entre elas a dos “dois espíritos”. Através de toda uma série de esforços e violências, os cristãos forçaram os nativos americanos a atuar de acordo com os novos papeis de gênero designados por eles.
Aquele que os encontra e os mata
Guerreiro “dois espíritos” Osh-Tisch (na foto acima). Um dos “homens de dois espíritos” mais famosos e celebrados foi o guerreiro Lakota chamado Osh-Tisch (cujo nome significa, bem acertadamente, “Aquele que os encontra e os mata”). Esse guerreiro nasceu varão e se casou com uma mulher, porém se vestia com roupas femininas e vivia o seu quotidiano como uma mulher. Em 1876, Osh-Tisch ganhou grande reputação e registrou seu nome na história ao resgatar e salvar a vida de um homem de sua tribo durante a Batalha de Rosebud Creek.
Nas culturas indígenas americanas, as pessoas eram consideradas, avaliadas e julgadas por sua contribuição à comunidade tribal, não importando os seus atributo de masculinidade ou feminilidade. Segundo o Indian Country Today, os pais não conferiam papeis de gênero às crianças, e todas elas vestiam uma mesma roupa de tipo neutro. Não existiam, além disso, preconceitos ou ideais com relação a de que forma uma pessoa deveria amar; tratava-se simplesmente de um ato natural que ocorria sem julgamentos vindos do meio social circundante.
Ao contrário do que vemos na atualidade, as “pessoas de dois espíritos” na América anterior à chegada dos europeus eram altamente veneradas. As famílias que possuíam um membro assim eram consideradas como tendo muita sorte. Acreditava-se que uma pessoa que vinha ao mundo “com os olhos de ambos os espíritos, o feminino e o masculino” – ou seja, com a capacidade de ter do mundo tanto a interpretação masculina quanto a feminina – era uma dádiva do Criador.
A influencia religiosa ocidental gerou sérios prejuízos contra esta forma de diversidade de gêneros praticada por esses povos. Isso obrigou a um grande número de indivíduos afetados a assumir uma das duas opções forçadas ou a se esconder de modo a proteger sua vida.
O caso dos nativos americanos nos estimula a perguntar se essas condutas tão flexíveis em matéria de papeis de gênero são realmente “antinaturais” como preconiza a moral ocidental e cristã. Se em outras sociedades tais condutas foram consideradas normais – e até como “uma benção do Criador” – sem que ocorresse nenhuma catástrofe por causa disso, por que acreditar que a homofobia seja uma “defesa do natural”?
+ Info: Leia (em inglês) o excelente texto de Will Roscoe: Native American: Two Spirits at National Historic Sites ( http://www.willsworld.org/Roscoe-2SpiritAtNationalHistoricSites.pdf )
Vídeo: Two spirits