Desde a queda da União Soviética, o Ocidente assumiu como seu o encargo da “unificação do mundo” e da destruição do “sistema vestfaliano”. Esta ordem internacional estruturada em 1648, resultante dos tratados que puseram fim a 30 anos de guerras europeias, sobreviveu aos dois conflitos internacionais do século 20 e em linha geral sobrevive até hoje. Mas agora, na opinião de analistas russos, os Estados Unidos e seus aliados querem acabar com ela para impor uma nova ordem.
Autor: Timofey Bordachev (*)
Fonte: Revista Profile, Moscou
Há pouco mais de 40O anos, a 23 de maio de 1618, burgueses e nobres checos protestantes atiraram pelas janelas do Castelo de Praga dois ministros do imperador e um dos seus secretários. Assim começou a Guerra dos Trinta Anos, um conflito como o mundo cristão nunca tinha conhecido, resultante do descontentamento dos novos centros de poder da época (as províncias protestantes e a França) face a posição hegemônica do Império Católico dos Habsburgos na Europa Central.
Os combates foram particularmente violentos: quase 40% da população civil foi dizimada nas províncias alemãs. Um terço das cidades alemãs ficou reduzido a cinzas. A guerra terminou com os dois tratados de Vestfália, que lançaram as bases para as novas regras nas relações entre as nações. O Tratado de Munster e o Tratado de Osnabruck, assinados pelas partes beligerantes, foram redigidos por varias centenas de representantes dos Estados católicos e protestantes. Esses tratados constituíram a base de uma ordem mundial que, em suas linhas gerais, permanece válida e atuante até os dias de hoje.
Henry Kissinger escreveu em A Ordem Mundial: “A genialidade desse sistema (chamado “vestfaliano”), e a razão pela qual ele se espalhou pelo mundo, é que as suas disposições abordavam questões de procedimento e não de fundo. “No centro dessas disposições estava o reconhecimento da legitimidade e da igualdade de princípio entre os Estados, na sua condição de “cidadãos” de um sistema internacional. Outro grande princípio do sistema vestfaliano foi inspirado numa regra em vigor no mundo religioso dos Habsburgos – “Para cada região, a sua religião”-, o que, de fato, interditava conflitos religiosos.
Deve salientar-se que o sistema vestfaliano não regulava nem limitava a passagem de domínio de um território de um reino para outro, e as potências europeias estiveram em guerra nos dois séculos seguintes por territórios e por recursos naturais.
Um conflito ainda mais terrível
Em 1914, pouco menos de 300 anos depois, exasperada por não se sentir suficientemente respeitada, a Alemanha arrastou a Europa para a Primeira Guerra Mundial.
A seguir, em 1939, provocou um conflito ainda mais terrível. Essas duas tragédias podem ser reunidas numa única sequência histórica. Uma espécie de Segunda Guerra dos Trinta Anos. Esta última conseguiu o notável resultado de impor a primeira correção em 400 anos ao princípio vestfaliano da igualdade. De fato, depois de 1945, um grupo escolhido de grandes potências – os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU – concedeu a si próprio o direito exclusivo de tomar decisões vinculativas para todos os outros membros da comunidade internacional.
Nas duas Guerras dos Trinta Anos, as potências que deram origem ao conflito foram as que ficaram de fora do sistema existente de direitos e de privilégios. Não foi por acaso que o famoso historiador e estudioso de filosofia política, Edward Hallett Carr, observou, em 1939, que “o que foi universalmente qualificado como o ‘retorno da política da força’ marca, na verdade, o fim do monopólio de força de que as potências então vigentes usufruíam”. Hoje, o monopólio da força sofre um revés, e não apenas na sua dimensão militar clássica. Pela primeira vez desde 1991, a operação russa na Síria (a partir de setembro de 2015) pôs um limite ao direito de os Estados Unidos da América destruírem o que não é do seu agrado. O programa de desenvolvimento estratégico chinês, chamado Um Cinturão, Uma Rota (o gigantesco programa de construção da China para recriar rotas comerciais da Ásia para a África e a Europa), poderá pôr fim ao monopólio do Ocidente em matéria de economia e de soft power.
Surpreendentemente, são de novo aqueles que deviam manter a ordem estabelecida os iniciadores dos conflitos. Pior ainda, o paradoxo da situação atual está no fato de que atualmente, como nos anos que se seguiram à primeira Guerra Fria, foram os Estados que saíram dela como vencedores que mais prontamente recorreram à politica da força, ou seja: os Estados Unidos da América e os seus aliados europeus. Não podemos comparar o número das suas intervenções militares no decurso dos últimos 27 anos com as ações da Rússia ou da China (que não combateu ninguém) e de todos os países do mundo juntos.
Os verdadeiros revisionistas
Isso nos leva a pensar que os verdadeiros revisionistas são justamente as potências do Ocidente e que, desde o início, estas visaram os próprios fundamentos da ordem mundial. Não é por acaso que, nos anos 90 e nos primeiros anos do século 21, falou-se muito do “fim da ordem vestfaliana” e da transição para um novo sistema de referências, incluindo o desaparecimento da soberania clássica.
No entanto, como E. H. Carr observou no seu tempo, aqueles que mais evocam a desvalorização da soberania nacional são os que têm os melhores meios para defender a sua. E eis que hoje os maiores revisionistas da história mundial, os Estados Unidos da América, anunciam, pela voz do seu excêntrico presidente Donald Trump, uma estratégia baseada na defesa unilateral dos seus interesses. Voltamos, assim, a um clássico da história mundial: não se luta por valores mas por recursos e pelo domínio.
A Rússia, no essencial, nunca apelou para a revisão da ordem mundial. Pelo contrário: até 2014, reiterou incansavelmente que o direito internacional devia ser respeitado e que o Conselho de Segurança da ONU era a única instância legitima. Quanto à China, embora esta tenha criado instituições econômicas internacionais paralelas às controladas pelos EUA, nunca questionou as instituições políticas. Ainda hoje Moscou justifica o seu braço de ferro para com o Ocidente com a suposta necessidade de estabelecer um mínimo de regras de jogo que podem ser novas na forma mas que, no fundo, apelam simplesmente ao Ocidente para que este respeite as normas de conduta adotadas desde a paz de Vestfália, em1648 – não interferir nos assuntos internos, respeitar a igualdade soberana dos Estados e não procurar dominar os outros pela força -, o que, aliás, põe a Rússia numa posição muito mais vulnerável na segunda Guerra Fria atualmente em curso, porque, na realidade, o objetivo da relação de forças é a vitória e não um acordo ou um tratado.
Braço de ferro com o Ocidente
Um equilíbrio de forças pode ter como objetivo um acordo, quando as partes reconhecerem plenamente a sua legitimidade recíproca. Este foi o caso da mais significativa das guerras “diplomáticas” dos últimos 400 anos, a Guerra da Crimeia (1853-1856). Na época, o objetivo de um dos protagonistas do conflito, o Imperador Napoleão III, não era executar o plano insensato de Lorde Palmerston que queria acabar com o domínio russo da Polônia, dos Países Bálticos, da Crimeia e do Cáucaso, mas restaurar um equilíbrio de forças na Europa – o que ele fez com sucesso depois da tomada de Sebastopol. Notemos, também, que em meados do século 19, tal como acontece hoje, os opositores da Rússia formavam uma coligação, só que, na época, as relações entre as potências baseavam-se na legitimidade monárquica que tinha uma função bastante parecida com a que é garantida atualmente pela Carta das Nações Unidas: limitar a ação arbitrária dos Estados mais fortes. É precisamente o regresso a tal reconhecimento mútuo de legitimidade que a Rússia e a China reivindicam hoje.
Porém, este não é o caso dos Estados Unidos da América e dos seus aliados. Após o fim da Guerra Fria e o colapso da União Soviética, os Estados mais fortes continuaram a violar os princípios fundadores das relações internacionais. Se não conseguiram levar adiante a sua política contra a pequena, mas totalmente inabalável, Coreia do Norte, impuseram a sua vontade ao Irã.
A Iugoslávia, importante Estado europeu, foi desmantelada como se fosse um vulgar carro roubado. Enviaram três líderes do Oriente Médio para o outro mundo e já tinham em vista um quarto. Finalmente, conduziram a Rússia para o confronto direto, ao apoiarem um golpe de Estado num país de vital importância para ela. Por agora designaram a China como novo inimigo, apesar de Pequim parecer mais pacífica se comparada com Moscou…
A diversidade é uma fatalidade
Aquilo que estamos assistindo atualmente não é um contra-ataque do Ocidente, porque ninguém o atacou. Os Estados Unidos da América e os seus aliados foram os instigadores de uma batalha de sistemas quando, em 1991, o seu principal contrapeso, a poderosa União Soviética, desapareceu. O sistema vestfaliano baseia-se num principio implícito: a diversidade é uma fatalidade, à qual devemos resignar-nos e que deve ser uma condição para a concretização de interesses nacionais e prioridades de desenvolvimento. No entanto, desde o final da primeira Guerra Fria, a essência da política do Ocidente é, pelo contrário, a negação da diversidade. Uma negação que, por vezes, assumiu formas caricaturais. Lembremo-nos do estrondoso ensaio de Francis Fukuyama sobre O Fim da História e o Último Homem e sobre a unificação do mundo, exceto que, de fato, o curso político adotado pelo Ocidente resultou na destruição do Médio Oriente, na ruína da Ucrânia e da Moldávia, na política absurda da União Europeia em relação à Rússia e em muitas coisas pouco brilhantes. Hoje, a unificação já não é o objetivo. O que se busca é a submissão.
A segunda Guerra Fria começou muito antes de 2017. Porém, foi depois de 2014 que entrou numa fase em que os golpes já não são desferidos unilateralmente, o que é já um progresso e provoca a fúria da outra parte. A natureza do conflito não mudou: poder e prestígio; fator ideológico, em menor importância. Ao mesmo tempo, esta segunda Guerra Fria faz parte de um processo mais vasto de reformulação da ordem mundial, seguindo o novo equilíbrio de forças. Nos dois tempos anteriores, na primeira metade do século 17 e na primeira metade do século 20, essa reorganização ocorreu por meio de guerras reais e assassinas de milhões de pessoas.
Hoje, a probabilidade de eclosão de uma guerra convencional não híbrida é menor devido à potência das armas de que dispõem os protagonistas. Sem dúvida que o ataque norte-americano de abril de 2017 contra a Síria, aliada da Rússia, continua a ser um caso isolado – e, em abril de 2018, os aliados ocidentais fizeram tudo para evitar que a Rússia desse uma resposta militar.
A realidade, porém, é que estamos no limite de um conflito armado frontal entre superpotências, cujo resultado será imprevisível. A menos que ocorra uma catástrofe, esse confronto poderá durar muito mais do que um conflito armado convencional. No entanto, independentemente da sua duração, é pouco provável que esta imponha novas regras de jogo, porque o legado dos tratados de Vestfália é demasiado importante e universal para ser rejeitado. O resultado será uma redistribuição de recursos e de poder – até a próxima vez.
(*) Timofey Bordachev é diretor do Centro de Estudos Europeus e Internacionais da Escola de Altos Estudos em Economia de Moscou.