Recentemente, tive a oportunidade de entrevistar Reginald A. Ray, um mestre americano de meditação. Há 40 anos Reggie Ray estuda e pratica meditação dentro da tradição budista tibetana. Ele possui um dom especial para aplicá-la aos problemas e aos imperativos espirituais das pessoas modernas.
Por: Benjamin Riggs (*)
Benjamin Riggs – Como é um dia normal na vida de Reggie Ray?
Reggie Ray (**) – Neste momento, por exemplo, estou em retiro, me preparando para um programa em meados de julho. Na parte da manhã, pratico meditação por algumas horas, e faço um pouco de Chi Kung, uma arte marcial chinesa. Gasto um pouco de tempo conversando com minha esposa sobre algumas ideias para o próximo programa. Então, pratico meditação um pouco mais. À noite, alguns alunos mais antigos passam por aqui, vamos conversar e tomar chá. E pratico um pouco mais de meditação. Isso é ótimo. Bem, essa é a minha vida agora, me preparando para o programa. É o que eu chamo de darma (***), e é realmente maravilhoso.
Uma das coisas que sempre achei atraente sobre os ensinamentos da tradição budista vajrayana, e dos seus ensinamentos em particular, é que o caminho é a sua própria vida diária. Você é alguém que ao mesmo tempo está comprometido com a prática e comprometido com o isolamento, mas você também é casado, tem família e responsabilidades que devem ser cumpridas.
Como sua vida diária complementa a sua prática e vice-versa?
Sou casado e tenho dois filhos. Sinceramente, no vajrayana, e na escola do lama Chogyam Trungpa, há mais possibilidade de realização espiritual na vida laica – desde que você a combine harmoniosamente com as práticas espirituais – do que há na vida monástica ou se você vive isolado em uma caverna.
Ouvindo isso, duas perguntas me vêm à mente: A maioria de nós tem toneladas de ideias preconcebidas sobre mestres espirituais. Nós tendemos a pensar que eles são perfeitos, como se nunca tivessem tido um desentendimento com alguém, ou não tivessem experimentado emoções negativas. Eu tenho uma namorada e ao mesmo tempo estou comprometido com uma prática espiritual, e portanto sei o quão difícil isso pode ser. Na verdade, uma grande parte do tempo, é como se essas “possibilidades de realização espiritual” que você mencionou anteriormente estivessem sendo retiradas de mim porque eu tenho uma namorada.
Isso é exatamente correto. Bem, vamos enfrentar a questão. Em nossa tradição ocidental, mas também no budismo tradicional asiático, existe essa ideia de que, de alguma forma, a iluminação e a espiritualidade são separados dos fatos da vida comum. Na tradição vajrayana essa convicção é tida como completamente equivocada.
Muitas pessoas acham a vida dolorosa. Eles se voltam para a espiritualidade para fugir das agruras cada vez mais complicadas da vida no mundo. Mas ao fazer isso, as possibilidades de transformação diminuem muito. Então, temos que perguntar: “O que é espiritualidade?” A espiritualidade é algo inato em todo ser humano. Ela significa uma mudança constante, significa o desdobramento da personalidade humana em direção à realização. Ao ouvir isso, você poderia dizer, “Isso soa muito antropológico e psicológico”, e é.
Quando o Buda falou sobre a impermanência, ele estava falando sobre viver a vida sem se trancar no interior de ideias fixas a respeito de quem você é. Você se desdobra como pessoa. Quando você aceita radicalmente a impermanência você está aceitando a mudança sem fim que é parte do desdobramento da personalidade humana no caminho da sua perfeição. Quando Buda falou sobre o dualismo, ele estava falando sobre não tentar estabelecer alguma ideia fixa de quem você é, e, em seguida, tentar viver dentro de alguma identidade segura e protegida. Em vez disso, no budismo você está disposto a aceitar a perene morte e o renascimento da ideia que você faz de si mesmo.
Inicialmente, no mundo ocidental, achamos que a espiritualidade significa que temos que disciplinar nossa vida; temos que nos estabelecer, temos que praticar a meditação, temos que perceber que há uma paz e uma abertura dentro de nós. Em seguida, após ter contatado aquela grande consciência, aquele espaço/tempo aberto e vazio que existe dentro de você, você tem de se empenhar plenamente na vida do dia-a-dia. Você tem que ser 100% na vida diária. A razão é que, mesmo quando a nossa mente está aberta e pacificada, há prisões, bloqueios e obstáculos no inconsciente que não estão sendo abordados. E eles realmente nos fazem regredir, eles reduzem a amplitude da nossa consciência. Assim, no budismo vajrayana existem dois passos. Em primeiro lugar, entre em contato com o estado natural, o que chamamos de “a mente por nascer”. Segundo, você tem que se envolver com a vida e deixar a vida instigar em profundidade todos os seus bloqueios, neuroses, e reações infantis primitivas. E quando essas coisas todas – ligadas ao trabalho, aos relacionamentos, particularmente às relações íntimas – trouxerem esses bloqueios à superfície, você se senta e medita sobre eles e com eles, tornando-os assim integrados em sua consciência. Para a escola vajrayana, é o engajamento ativo e consciente na vida do dia-a-dia que nos faz crescer e evoluir. E não, como tantos acreditam, se protegendo, fugindo para dentro de uma caverna ou de um mosteiro. É na lida do dia-a-dia que a viagem verdadeira irá acontecer. E percorrendo essa longa estrada, é enfrentando as dificuldades que a jornada oferece que você poderá realmente alcançar algo.
Do ponto de vista da sabedoria vajrayana, a vida que você e eu estamos vivendo – com os relacionamentos, o trabalho e as conexões com nossos amigos e inimigos – representa a situação ideal para que ocorra a realização espiritual.
O corpo como guru
Quando soube que iria lhe entrevistar, a primeira coisa que fiz foi sentar-me e ouvir algumas outras entrevistas que você deu. Em seu site encontrei uma entrevista intitulada “O corpo como guru”, na qual você fala sobre o caminho espiritual e vida cotidiana. O apresentador do programa disse: “Temos que levar nossa prática para fora da poltrona”, frase que ouvi milhares de vezes. Mas a resposta que você deu foi nova para mim. Você disse: “Ou então, temos que redefinir o que significa se sentar em uma poltrona.” Você não passou exatamente o que quis dizer naquela entrevista… Então, eu estou pedindo para você elaborar isso agora.
Quando estamos sentados em uma poltrona, ou sobre uma almofada, meditando, na verdade estamos ampliando nossa consciência, estendendo-a, dilatando-a em nossos corpos e fora deles. Estamos vivendo uma forma de presença na totalidade do nosso ser. Apenas na superfície ele é um ser somático. Nesse estado, a informação de que precisamos para nossa vida surge dentro de nós, claramente, como efeito natural daquele estado de expansão da consciência que criamos. A verdadeira poltrona, ou almofada, é o seu corpo.
Se você sentar para meditar com alguma ideia sobre um certo estado de espírito que você está tentando alcançar, ou carregando a memória de alguma experiência agradável ou desagradável do passado, então você não está fazendo nada diferente do que estar em uma reunião, tentando se apresentar bem, tentando impressionar as pessoas a seu redor. A única diferença é que você estará tentando impressionar a si mesmo. Isso não é meditação. Meditação é quando você se senta e abandona todo o seu esforço, e se permite estar presente. Meditação é isso.
Então, como você mencionou, combinar a prática meditativa com a vida diária – no trabalho, na convivência com o marido ou a esposa, os filhos, etc – esta é a situação ideal do ponto de vista da escola vajrayana. Esses aspectos aparentemente comuns da nossa vida diária têm a capacidade de romper nossas defesas, pressionar nossos botões, e nos convidam a nos revelarmos. Você disse que a espiritualidade é o desdobramento da personalidade humana em direção à sua perfeição. Estou assumindo que por “perfeição” você não quer dizer alguma ideia estática sobre a perfeição. O que exatamente você quer dizer quando você diz “perfeição?”
Na verdade, em vez do termo perfeição, eu prefiro dizer, “satisfação” ou “realização”. Da mesma forma que um animal passa por seu ciclo de vida – percorrendo todo o caminho da condição de embrião até a morte – esse percurso, não importa se você seja um verme ou um leão, é um percurso de “realização”
Como somos seres humanos, podemos usar a analogia da iniciação nas sociedades indígenas. Nas sociedades indígenas, a certo ponto as pessoas passam por uma iniciação que os apresenta para o fato de que a vida é muito maior do que o que eles poderiam ter pensado quando eram crianças ou até mesmo durante a adolescência. Nossa consciência humana natural é ilimitada. Tudo na criação tem um ciclo de vida, e quando as pessoas se permitem se desdobrar – quando se permitem seguir o ciclo natural, biológico e geneticamente dirigido do que significa ser humano – nossa compreensão e consciência se tornam maior e maior. Temos mais consideração com os pontos de vista de outras pessoas, para o mundo além do nosso – o mundo animal, o mundo vegetal, e o universo. É disso que estou falando.
Existe no ser humano uma tendência natural para o que o budista chama de “iluminação”. E isso, claro, também pode ser observado nas sociedades indígenas. No budismo chamamos isso de natureza búdica, mas a natureza búdica não é simplesmente um estado estabelecido. É um processo de estar no rio de um amadurecimento espiritual que continua eternamente, nunca chegando a um ponto estático. Perfeição, neste caso, se refere a cumprir a jornada da vida humana. Quando entendemos total e completamente o que significa ser humano, temos que abandonar qualquer tentativa de nos colocarmos abaixo disso, de nos solidificarmos, ou de nos incrustarmos em uma das muitas fases do processo. É um processo aberto, interminável. Quando abandonamos completamente qualquer tentativa de nos retirar da vida ou de ficarmos congelados no tempo, isso é o que eu quero dizer com perfeição.
Seria justo dizer que sua descrição de “perfeição” corresponde aos ensinamentos de Chogyam Trungpa quando ele fala de “iluminação”. Há um processo contínuo de revelação e de abertura, mas o espaço que é descoberto quando o abrimos não é um espaço morto.
Certo. Quando estamos fazendo aquilo, naquele momento, estamos realmente com o que somos. Isso é o que se quer dizer com iluminação.
(*) Reginald A. Ray reside atualmente em Crestone, Colorado, onde é diretor espiritual da Fundação Dharma Ocean, uma organização educacional sem fins lucrativos dedicada à prática, estudo e preservação dos ensinamentos de Chögyam Trungpa Rinpoche e da linhagem prática que ele encarnava.
(**) Ben Riggs é diretor do Grupo de Meditação Refúgio em Shreveport, Los Angeles. Ele escreve muito sobre espiritualidade budista e cristã para The Good Men Project, Elephant Journal e The Web of Enlightenment. Para atualizar-se com todo o seu trabalho, siga-o no Facebook ou Twitter.
(***) Darma, em sânscrito, significa “Lei Natural”, “Realidade” ou “vida” no modo geral. Com respeito ao seu significado espiritual, pode ser considerado como o “Caminho para a Verdade Superior”. O darma é a base das filosofias, crenças e práticas que se originaram na Índia.