O ser humano deixa marcas cada vez maiores na Terra. Sua influência hoje é tamanha que já se discute se o Homo sapiens merece uma época geológica só para si, o Antropoceno – a “idade recente do homem”. Se confirmada, a era dos impactos humanos poria o antropoide de 200 mil anos numa dimensão geofísica comparável à dos asteroides que dizimaram a vida terrestre ou à dos supervulcões cujas erupções cobriram de nuvens os céus do planeta.
Por: Eduardo Araia
Se a história geológica da Terra fosse condensada nas 24 horas de um dia, o homem moderno só surgiria quando faltassem três segundos para a meia-noite. À primeira vista seria um obscuro coadjuvante numa movimentada trama de mais de 4,5 bilhões de anos. Mas esse modesto personagem revolucionou o seu roteiro: sobreviveu a glaciações, espalhou-se da África para outros continentes, tomou conta do mundo e interferiu em praticamente todos os ecossistemas.
Sua influência hoje é tamanha que já se discute se o Homo sapiens merece uma época geológica só para si, o Antropoceno – a “idade recente do homem”. Se confirmada, a era dos impactos humanos poria o antropoide de 200 mil anos numa dimensão geofísica comparável à dos asteroides que dizimaram a vida terrestre ou à dos supervulcões cujas erupções cobriram de nuvens os céus do planeta.
Este é um debate que promete render. De um lado há cientistas mais conservadores, para quem o homem, por mais impactantes que sejam os seus feitos, não passa de uma poeira cósmica que ainda não deixou marca registrada no solo terrestre, aquela que, daqui a milhares ou milhões de anos, permitiria a um geólogo alienígena concluir, sem sombra de dúvida, que nossa raça habitou este planeta.
Do outro lado, há um contingente apreciável de acadêmicos preocupados com o futuro e com a rapidez das transformações do planeta, que não se importam em rever conceitos. Muitos estratígrafos – geólogos especializados no estudo da formação e disposição dos terrenos estratificados (aqueles que se apresentam em camadas sucessivas) – têm demonstrado abertura para o tema. Um dos mais destacados é o inglês Jan Zalasiewicz, da Universidade de Leicester, para quem, se o termo já é usado por geólogos e ecologistas, merece ter uma definição aceita.
Fração de segundo
A história geológica da Terra se estende por 4,5 bilhões de anos e quatro grandes divisões, ou éons: Hadeano, Arqueano, Proterozoico e Fanerozoico (o atual). Cada éon subdivide-se em eras. O éon Fanerozoico (com 543 milhões de anos) tem três: Paleozoico (A), Mesozoico (B) e Cenozoico (C). As eras são divididas em períodos. A atual era Cenozoica (65 milhões de anos), tem dois: o Paleogeno (D) e o Neogeno (E). Os períodos, por sua vez, dividem-se em épocas. O nosso período Neogeno (de 23 milhões de anos) possui quatro épocas, por enquanto: o Mioceno, o Plioceno, o Pleistoceno e o Holoceno (iniciado há 12 mil anos). O Antropoceno – a idade recente do homem – seria uma quinta época. Apenas um ponto na linha do tempo.
“O Antropoceno é significativo em muitos níveis”, afirmou Zalasiewicz. “Em termos geológicos, ele representa a propagação global de fenômenos que não haviam sido vistos antes na história de 4,5 bilhões de anos do planeta, e cujos efeitos, em muitos casos, vão durar milhões de anos. O conceito reflete a interação de nossa própria espécie com o planeta e nos permite considerar as consequências de nossas ações coletivas no contexto do ‘tempo profundo’ da história da Terra. Por isso, pode tornar-se um fator importante das tentativas socioeconômicas, legais, políticas e filosóficas para controlar coletivamente o nosso impacto no planeta.”
Zalasiewicz começou a ser atraído para o assunto ao perceber a disseminação que a palavra Antropoceno ganha, rapidamente, no meio acadêmico. Em 2007, quando presidia a Comissão de Estratigrafia da Sociedade Geológica de Londres, ele perguntou a 22 colegas presentes num encontro sua opinião sobre o termo. O resultado não deixou dúvidas: 21 consideraram o conceito válido.
Zalasiewicz comanda hoje o Grupo de Trabalho do Antropoceno na Comissão Internacional de Estratigrafia (ICS, na sigla em inglês), cuja missão é avaliar se a época proposta possui de fato méritos para fazer parte da cronologia geológica. O grupo reúne “uma ampla diversidade de cientistas e pessoas que atuam em humanidades”, diz o geólogo, e está reunindo evidências para apresentar à comissão. A decisão final sairá das conclusões dos membros da ICS e do organismo que o abriga, a União Internacional de Ciências Geológicas.
Embora alguns jornais e revistas importantes tenham indicado o 34º Congresso Internacional de Geologia (ICG, na sigla em inglês), em agosto de 2012, em Brisbane, na Austrália, como um marco decisivo no debate, os cientistas advertem para não se esperar novidades importantes sobre o tema na ocasião. Os geólogos são uma comunidade cautelosa de cientistas, compreensivelmente recalcitrante para reconhecer como mudança consolidada algo que, em termos geológicos, ainda está na incubadeira.
Para alguns cientistas, o Antropoceno ainda nem começou. Em termos estratigráficos, ele só ficaria mais patente nas próximas décadas, com o aumento considerável no nível do mar, por exemplo. “Brisbane é prematuro para nós”, avalia Zalasiewicz. “Temos o objetivo de montar uma proposta para a ICG seguinte, no prazo de cinco anos. Fazer alterações na Escala de Tempo Geológico é um processo lento e cuidadoso, devido ao papel fundamental da Escala de Tempo para a geologia. O Antropoceno é, em muitos aspectos, uma questão mais complexa do que a consideração de intervalos anteriores do tempo geológico.”
“O Holoceno já ficou para trás”
Seja qual for o resultado do processo, é inegável que o termo já entrou para o glossário científico. Cunhado na década de 1980 pelo biólogo norte-americano Eugene Stoermer, o conceito começou a ser popularizado em 2000 pelo químico holandês Paul Crutzen. Vencedor do prêmio Nobel de 1995, pela descoberta dos efeitos danosos de compostos na camada de ozônio, Crutzen assistia a um simpósio no México no qual seu presidente referia-se várias vezes à presente época geológica, o Holoceno, iniciada há cerca de 12 mil anos, com o fim da última glaciação. Incomodado com a recorrência no uso do termo, o químico não resistiu e pediu a palavra: “Precisamos parar com essa história. O Holoceno já ficou para trás. Agora estamos no Antropoceno!”
No intervalo para o café sua intervenção já era o assunto mais comentado, sinal de que a ideia ressoava no meio científico. Em 2002, o holandês desenvolveu o conceito em um artigo publicado na revista científica Nature e com isso pesquisadores de diversas disciplinas passaram a utilizá-lo. Não demorou muito para a palavra se tornar comum em órgãos de divulgação científica.
Uma vez que se aceite o Antropoceno como época geológica, é necessário definir quando o período começou. Ao divulgar o termo, Crutzen pensava inicialmente no início da Revolução Industrial, em meados do século 18, quando os níveis de gás carbônico começaram a se acumular na atmosfera, uma alteração confirmada por amostras de núcleos de gelo. A maioria das pessoas que usa a palavra adota esse ponto de vista, mas o próprio Crutzen está revendo a ideia. “Estou começando a inclinar-me para o estabelecimento do marco na Segunda Guerra Mundial”, o início da era nuclear”, disse.
Para o paleoclimatologista norte-americano William Ruddiman, da Universidade da Virgínia, o começo do período deveria ser estabelecido bem antes: no início do Holoceno. Ele lembra que a agricultura se disseminou há cerca de 8 mil anos, desflorestando várias regiões do planeta, gerando um incremento de gás carbônico na atmosfera capaz de evitar uma nova idade do gelo. Outros cientistas consideram que o Antropoceno deveria ser datado em meados do século 20, quando se iniciou uma acelerada expansão do crescimento demográfico e do consumo dos recursos naturais.
As indefinições não impedem que a expressão se espalhe. Alguns cientistas e pensadores veem nela uma espécie de sinal de arrogância da raça, reveladora do fato de que “possuímos” a Terra e a estamos exaurindo – um exemplo da hybris (soberba) da mitologia grega, cuja punição divina era fazer o pecador voltar aos limites que havia transgredido. No geral, a palavra Antropoceno é usada como um imenso sinal amarelo no que se refere aos impactos humanos sobre nossa morada planetária. Crutzen já declarou que esperava que a disseminação do termo fosse “um alerta para o mundo”.
“Inauguramos uma guerra total contra Gaia”, diz o teólogo Leonardo Boff. “Ela precisa de um ano e meio para repor o que o ser humano lhe rouba num ano. Se não contivermos esse movimento, ele poderá nos levar a um caminho sem retorno, numa Terra devastada, coberta de cadáveres e com parca vitalidade. Nessa guerra, não temos chance de ganhar. A Terra não precisa de nós; nós, sim, precisamos da Terra. Ela pode continuar sem nós até que surja um ser complexo capaz de suportar a consciência, o espírito e a inteligência.”
A revista Nature defendeu em editorial a adoção do termo Antropoceno como uma oportunidade para fazer os seres humanos reformularem seu papel na Terra: “O conceito encorajaria uma atitude mental que será importante não apenas para entender por completo a transformação que está ocorrendo agora, mas para agir a fim de controlá-la.”
Zalasiewicz e Crutzen salientam que a validação formal dos geólogos teria o poder de ajudar a integrar as discussões sobre o papel da humanidade nas várias disciplinas científicas. Essa nova postura, permeada por uma consciência ética sobre o convívio com o planeta, pode resultar na reformulação necessária. Trata-se, no entanto, de uma tarefa indigesta, politicamente complicada, que exige mudanças nos modos de produção e consumo cujas dificuldades aumentam ainda mais em tempos de crise econômica como a atual.
“Os princípios de responsabilidade e de cuidado são axiais para um novo rumo civilizatório global”, observa Boff. “Mas essa consciência ainda não chegou aos tomadores de consciência. Talvez só chegue quando se realizar o que Hegel prognosticou: ‘O ser humano aprende da história que não aprende nada da história; mas aprende tudo do sofrimento.’ Quando a crise global atingir a pele de todos, todos darão o máximo de si para salvar-se, porque esse é o instinto de vida, mais forte do que o instinto de morte.
Cientistas reunidos em um encontro na Sociedade Geológica de Londres, em maio passado, compilaram indicadores que tornam plausível a ideia de uma “idade do homem”.
Mudança da paisagem – De acordo com o geógrafo Erle Ellis, da Universidade de Maryland (EUA), a humanidade já remodelou mais de 75% da superfície do planeta. As áreas de natureza intocada correspondem a apenas 23%. O restante engloba terras cultiváveis, lugares povoados e áreas industriais.
Mudança climática – A interferência humana no clima vai alterar a terra, os mares e a atmosfera por milhares de anos, segundo o climatologista australiano Will Steffens. Isso vai acarretar uma acidificação de longo prazo dos oceanos por conta do dióxido de carbono, a qual terá impacto duradouro na formação de rochas no leito marinho.
Solos transformados – Represas, mineração, erosão e urbanização já alteraram os solos de forma substancial, diz o geólogo norte-americano James Syvitski, da Universidade do Colorado em Boulder. A retenção de vastas quantidades de sedimentos em represas, por exemplo, diminui a sedimentação em regiões litorâneas.
Mudanças biológicas – O homem está abrindo caminho para uma ampla extinção de espécies ao destruir florestas e contribuir para o aquecimento global. Também está criando novas formas de vida, na agricultura e na biotecnologia. A agricultura e os meios de transporte levam organismos antes restritos a determinadas regiões para outros cantos do mundo. Tudo isso será perceptível para os geólogos do futuro a partir dos fósseis de nossa época.
Vídeo: Antropoceno Um novo período
Bárbara Mafei produziu um interessante vídeo sobre o Antropoceno. Ela o apresenta dizendo: “A civilização humana, que se desenvolveu num período estável do Holoceno, terá que se adaptar a um planeta instável e em mutação por gerações. O autor do artigo utilizado como fonte é Jan Zalasiewicz, professor de paleobiologia na Universidade de Leicester, na Inglaterra, e presidente do Grupo de Trabalho sobre o Antropoceno da Comissão Internacional de Estratigrafia. O artigo foi publicado na Scientific American, com o título “Uma História em Camadas”, ano 15, nº 170, outubro de 2016, nas páginas 34-39.”