A Antártica é a única região da Terra ainda não totalmente conquistada pelo homem. É o mais frio, mais seco, mais alto, mais ventoso, mais remoto, mais desconhecido e mais preservado de todos os continentes. E reserva, para o visitante, incríveis momentos de diálogo com a natureza.
Por Luis Pellegrini, fotos de Lamberto Scipioni, da Península Antártica
Na Baía do Almirantado, esgueirando-se entre a miríade de blocos de gelo flutuantes, nosso bote de borracha se aproximou da praia de neve e cascalho onde, mais à frente, deveria aparecer a Estação Antártica Comandante Ferraz. Perguntei: Onde está a Estação? Onde estão os sessenta e tantos módulos de aço galvanizado que a compõem, pintados com o gritante verde-esperança-da-nossa-bandeira? Sobre a superfície do imenso campo de neve branquíssima viam-se apenas algumas grandes manchas de cor laranja intenso, encimadas por antenas parabólicas. Essas manchas eram o teto da base. Tudo o mais estava invisível, coberto pela neve.
Na praia, um pequeno grupo de brasileiros estacionados na Comandante Ferraz, nos esperava com as boas-vindas. “Este ano tivemos a maior quantidade de neve desde a inauguração da base, em 1984. Todas as instalações estão cobertas por uma camada de 3 metros. Só os tetos ficaram de fora, e assim mesmo porque após cada nevasca vamos lá em cima e varremos tudo”, explicou o baiano Roberto Lopes dos Santos, sargento da Marinha especializado em instalações elétricas, há quase dois anos na Estação, enquanto nos conduz para a entrada dela. Qual a razão dessa neve toda? “Os climatologistas acham que é por causa do aquecimento global. A temperatura média na Península Antártica, onde nos encontramos, aumentou cerca de 5 graus centígrados nos últimos anos. Temperaturas mais altas significam maior evaporação de água. Mais umidade na atmosfera significa maior índice de precipitações. Assim, por incrível que pareça, a causa dessa neve toda é o calor”, completou o sargento Roberto.
Pisando na neve fofa, enfiando as pernas até os joelhos, chego diante de um grande buraco. Uma série de degraus escavados na parede interna do buraco forma uma escada rudimentar que desce até a entrada.
Passada a porta, entra-se num grande salão cheio de mesas e sofás. Tem até um barzinho. É a área social da Estação Comandante Ferraz. O lugar onde o pessoal se reúne nos momentos de folga, e se recebem as visitas. Sobre uma mesa, bandejas cheias de bolos, biscoitos e bolachas maizena. No ar, o cheirinho de café fresco não deixa margem a dúvidas: estamos em território brasileiro.
Lá dentro, todo mundo está de camiseta, os aquecedores estão todos desligados. Faz calor. Como isso é possível quando se está soterrado sob três metros de neve? É o “efeito iglu”, bem conhecido pelos esquimós que habitam o outro extremo da Terra, o Ártico. Uma casa de gelo reflete e concentra o calor em seu interior.
Os delírios do clima que estão acontecendo no Ártico, com o derretimento das banquisas e profundas alterações nos territórios polares da Groenlândia, Sibéria e Canadá, também dão o ar de sua graça na Antártica. Até há poucos anos, só no auge do verão austral, entre dezembro e fevereiro, era possível chegar de barco até as praias continentais da Antártica. Nos outros meses a superfície do mar se tornava gelo sólido, por extensões que podiam chegar a muitos quilômetros a partir das praias. Hoje, como aconteceu agora conosco, esse gelo se derreteu muito antes, já a partir do final do mês de outubro.
No mar, quanto mais nos aproximávamos do continente antártico, a bordo do navio norueguês NordNorge, a quantidade de icebergs surpreendia até os experimentados cientistas internacionais que lá estavam. Memórias do Titanic provocaram arrepios em alguns passageiros: passamos ao largo de montanhas de gelo flutuantes com mais de 50 metros de altura e dezenas de quilômetros de extensão. Se sabemos que, nos icebergs, apenas uns 20% do gelo aparece à superfície, era fácil imaginar o tamanho dos outros 80% que permanecem submersos abaixo dela.
Em certas áreas as águas antárticas são tão claras e transparentes que se consegue ver dezenas de metros da parte submersa dos icebergs. Um espetáculo tão bonito quanto assustador. Sobretudo quando o iceberg é muito grande e… azul da cor do céu. “São aqueles feitos de gelo muito velho, às vezes velho de milhares de anos, e que contêm pouquíssimo oxigênio dissolvido na sua composição”, explica o canadense John Chardine, especialista em geografia da Antártica.
Quando se navega no litoral da Antártica, é preciso estar pronto para se viver uma surpresa atrás da outra. Mas ninguém está preparado para a beleza tira-fôlego do Canal Lemaire, braço de mar de 11 quilômetros de extensão e 1,5 quilômetro de largura, entre a Ilha Booth e a Península Antártica. De um lado, os glaciares e as falésias escarpadas da ilha; do outro, as montanhas de cumes arredondados, cobertas de gelo, do continente. No meio, uma superfície marítima de águas azuis, tão tranqüilas que tudo se reflete nelas, duplicando o efeito da paisagem. Em certos pontos, miríades de icebergs de todos os tamanhos conferem ao mar o aspecto de um imenso campo de vidro craquelê. De repente, as águas se agitam e um bando de pingüins passa em corrida desabalada. Compreensível. Atrás deles, ágil como um míssil submarino, corre uma foca leopardo faminta, em busca do seu habitual almoço: 4 ou 5 pinguins al dente.
“Olha lá, olha lá: são as Tetas de Oona” (Oona’s Teats), grita o vulcanólogo alemão Uli Dornsiepen, um outro cientista a bordo, apontando para dois portentosos rochedos avermelhados que, lado a lado, realmente lembram gigantescos seios femininos. E corremos todos para o lado do navio de onde pode-se ver melhor as Tetas de Oona. Uli explica que o próprio descobridor do Canal Lemaire, o inglês Eduard Dallman, assim batizou os dois rochedos, em 1873, em homenagem a sua esposa Oona…
A visita à Ilha Cuverville, sempre na Península Antártica, aconteceu numa manhã de muita sorte. Cuverville abriga uma das maiores colônias de pingüins gentoo de toda a Antártica. Essa espécie de pingüim, exclusiva do continente branco, tem a peculiaridade de passar os 8 meses seguidos do inverno no mar. No início da temporada fria, centenas de milhares deles pulam nas águas e ficam nelas até o meio da primavera. No inverno ártico, o mar é bem mais quente do que a terra. Certa manhã, entre o final de outubro e o início de novembro, e como obedecendo a algum chamado secreto, todos eles voltam à terra, pulando em grupos para fora das águas e caindo de barriga na neve. No NordNorge estavam vários biólogos especialistas em fauna antártica, mas nenhum deles jamais tinha observado o grande momento do retorno dos gentoos à terra para o início da temporada de reprodução. Pois bem: aconteceu exatamente quando estávamos em Cuverville. De repente, alguém gritou: “Os pingüins estão chegando!” E realmente, primeiro uns dez, depois vinte, cem, milhares de criaturinhas vestidas de preto e branco foram saltando para fora do mar. Parecia um milagre. E estávamos lá para ver e fotografar.
Em pouco tempo, os pingüins estavam reunidos no alto e nos flancos das colinas costeiras, fazendo grande alarido, cada um deles buscando reencontrar seu companheiro ou companheira da temporada passada. Os gentoos são companheiros fiéis, e só escolhem outro marido ou esposa quando o outro não aparece para o grande encontro.
Foramos bem avisados: para nós, a distância máxima de aproximação das colônias de pingüins é de 5 metros. Mas podíamos sentar no chão, sobre a neve, e esperar. Caso algum pingüim estivesse interessado, tocaria a ele se aproximar ainda mais. E eles vêm, tão curiosos quanto seus visitantes humanos, não resistem. Aproximam-se até ficarem bem perto e nos
examinam com atenção, balançando a cabeça para a direita e a esquerda. Depois do exame, se a pessoa sentada diante deles tiver sido aprovada, levantam a cabeça bem alto e, lentamente, como quem faz uma reverência, curvam o pescoço para a frente até o bico tocar no chão. Fazem conosco exatamente o que fazem quando encontram o parceiro procurado: o saúdam com muito respeito. Sabíamos todos qual era a mensagem implícita naquele gesto de cortesia do pingüim para o humano escolhido. Na noite anterior, os biólogos tinham explicado tudo em detalhes: “Eu te reconheço e aceito como meu companheiro. Fique aqui, comigo”.
Como conter umas lágrimas de emoção? Esses encontros costumam durar poucos minutos, mas duram uma eternidade e encerraram uma lição difícil de esquecer: mesmo no mundo dos gelos eternos da Antártica, o diálogo homem/natureza pode acontecer. Desde que sustentado pelo respeito mútuo, o pacto de não-agressão, a aceitação das diferenças.
O continente dos extremos
Imagine um lugar com uma extensão territorial que, no verão, é de 13,7 milhões de quilômetros quadrados, a mesma que Brasil, Argentina, Uruguai, Chile, Peru e Bolívia juntos, mas que, no inverno, com o congelamento dos mares a seu redor, chega a 22 milhões de quilômetros quadrados.
Esse lugar concentra 90% do gelo do mundo, disposto em camadas com espessura que varia entre 2200 metros e 4800 metros. Todo esse gelo representa 80% da água doce do planeta. Porém, apesar de tanta água, trata-se do lugar mais seco do mundo, pois as baixas temperaturas não permitem a evaporação.
Separada dos demais continentes por mares tempestuosos, a Antártica é a mais fria, isolada, ventosa e inóspita região da Terra. Esse continente foi descoberto há apenas dois séculos. Hoje, a presença do homem na Antártica tem como objetivo primordial a pesquisa científica. Dezenas de países instalaram lá bases de pesquisa, entre elas o Brasil, com sua Estação Comandante Ferraz, onde vivem durante todo o ano cerca de 50 pessoas, entre militares, cientistas e auxiliares.
Localizada na Ilha Rei George, no arquipélago Shetland do Sul, a base brasileira só pode ser alcançada por mar durante o verão, ou por helicóptero durante o ano todo. Suas instalações foram projetadas para resistir a temperaturas de 35 graus negativos e ventos de até 200 quilômetros por hora, mantendo a temperatura interna estável.
Informações: http://ftp.mct.gov.br/Temas/Antartica/default.asp
Turismo e ciência a bordo do NordNorge
Hurtigruten, empresa naval norueguesa proprietária do transatlântico NordNorge, criou uma original proposta de viagem à Antártica e às ilhas sub-antárticas, entre elas o arquipélago das Falklands-Malvinas e a ilha Geórgia do Sul. A idéia é oferecer um misto de viagem de turismo e de aprendizado cultural. A bordo do NordNorge viaja mais de uma dezena de cientistas contratados, de várias nacionalidades e especializados em diversas áreas da ciência. Eles dão palestras ilustradas com fotografias e filmes documentários sobre os mais diversos aspectos do mundo antártico.
No NordNorge, quando não se está em terra visitando sítios realmente únicos, está-se aprendendo, descansando, ou saboreando as delícias da cozinha norueguesa.
Mais informações: www.hurtigruten.com
Originally posted 2010-02-09 15:19:17.
Bom, isto é tão deslumbrante que dispensa qualquer comentário.
Continue prestigiando esta Terra que Deus nos deu e que tanto as
pessoas maltratam.
Boa sorte, beijos no corazon.
Dra. Marie
Iluminado Pellegrini,
Tenho tanto desejo de falar o que sinto porém, faltam palavras para expressar minha real alegria ao conhecer alguém tão especial, que compartilha com todos nós uma belíssima vivência, como essa dos Pinguíns.
Realmente, aprender com a natureza uma forma de transcender as limitações humanas é uma dádiva. Ser alguém melhor, evoluir com o que há de mais belo e sagrado(a natureza) é um verdadeiro presente de Deus.
Sinto muita alegria em meu coração pela oportunidade de ouví-lo contar, pessoalmente, sobre essas belas criaturas. Foi um presente divino, não podendo conter minha emoção. Apartir de então, sempre lembro da grande lição: aceitar e respeitar à todos incondicionalmente.
Lindo!
Parabéns pelo blog, obrigada por compartilhar lindamente tuas experiências e nos dar a oportunidade de acharmos dentro de nós, o que há de mais sagrado.
Sucesso!Sucesso!
Que Deus te ilumine sempre.
Sua fã de carteirinha,
Janaina Montenegro.