A humanidade vai acabar tragada por guerras e desastres naturais ou vencerá seus problemas e explorará o universo? Uma nova perspectiva da teoria da evolução sugere que a seleção e a competitividade se enfraquecem numa sociedade global baseada nos valores da cooperação.
Por: Luis Pellegrini
Lembram-se do início da série Jornada nas Estrelas, uma das mais bem sucedidas produções da história da tevê e do cinema? A humanidade, após sobreviver a um conturbado século 21 e superar seus conflitos internos, lança-se à exploração de outras regiões do universo, em parceria com espécies alienígenas. Premissa válida ou pura ficção? Muitas pessoas preferem a segunda alternativa sem pestanejar, e com argumentos sensatos: para elas, os fanatismos políticos e religiosos, a ganância e o egoísmo inerentes à raça humana e tudo que comportamentos desequilibrados como esses acarretam na pobre Terra não nos deixariam nem sair do planeta, quanto mais viajar espaço afora ao lado de extraterrestres. Mas, para alguns estudiosos, a aposta preferencial no desastre não é a melhor escolha. Eles consideram que já existem elementos suficientes na humanidade para antevermos dias melhores, nos quais nossa raça terá um papel mais relevante no contexto universal.
Organizações cooperativas cada vez maiores
A base dessa hipótese está numa nova perspectiva da evolução, pela qual se descartam as ideias de que a vida na Terra não passa de um acidente desprovido de sentido em meio a um universo no qual a existência humana é, em termos práticos, um zero à esquerda. Há, sim, um significado por trás de tudo isso, assinala o pensador australiano John Stewart, membro do Grupo de Pesquisa de Evolução, Complexidade e Cognição da Universidade Livre de Bruxelas (Bélgica). E não é preciso buscá-lo no reino do sobrenatural. De acordo com o que Stewart descreve no estudo “The Meaning of Life in a Developing Universe” (O Significado da Vida em um Universo em Desenvolvimento), publicado em uma recente edição especial da revista Foundations of Science, a própria teoria da evolução, vista sob uma ótica mais ampla, dá pistas do que deverá acontecer.
Para o pensador australiano, um dos pilares dessa nova perspectiva da evolução reside no reconhecimento de que ela segue uma trajetória, o que indica um direcionamento prévio. “Em particular, a evolução na Terra repetidamente reuniu entidades de pequena dimensão em organizações cooperativas em uma escala cada vez maior”, escreve. O processo se repete desde o surgimento das primeiras e mais primitivas células, as quais deram origem a células mais complexas, que, por sua vez, formaram organismos multicelulares, os quais depois se organizaram em sociedades cooperativas. “(…) Uma sequência similar parece ter desdobrado na evolução humana: a partir de grupos familiares, de bandos, de tribos, para comunidades agrícolas e cidades- estados, nações, e assim por diante”, analisa Stewart. De acordo com ele, a trajetória evolutiva terrena não depende de seleção natural baseada em genes ou em processos culturais. Sua verdadeira mola mestra é o potencial, em todos os níveis de organização, que as equipes unidas por objetivos comuns possuem para obter melhores resultados do que indivíduos ou grupos isolados.
O conceito leva a uma discussão na qual a biologia tradicional ainda reluta em entrar: a evolução se move no sentido de favorecer o egoísmo ou a cooperação? A resposta preferida era o egoísmo, lembra Stewart, mas, nas últimas duas décadas, numerosos estudos fizeram o pêndulo se mover para a outra alternativa: “(…) Essas pesquisas mostram que a cooperação complexa emergirá entre indivíduos egoístas se eles estão organizados para que possam se beneficiar de seus atos cooperativos – e se aproveitadores e outros não colaboradores são contidos ou punidos.”
Cooperação no reino animal
Pesquisas recentes revelam a importância da cooperação na sobrevivência de muitas espécies. Confira alguns exemplos a seguir:
Formigas – Pesquisadores britânicos estudaram formigas tropicais por vários anos e desvendaram algumas de suas regras de comportamento. Uma delas é um sofisticado sistema de tráfego de mão dupla, no qual cada “pista” possui três faixas. Até 200 mil formigas deixam seu lar para buscar comida. Para isso, elas se dividem em dois grupos, de modo a formar duas rotas de saída; a volta se dá por uma única “pista” central, na qual são levados por vezes mais de 30 mil gafanhotos ou outros insetos que servirão de alimento. Para os cientistas, essa organização ultracooperativa deriva do fato de as formigas conviverem em grandes grupos há milhões de anos.
Peixes – A cooperação entre peixes está presente na higiene e na saúde desses animais. Peixes “faxineiros” nadam na boca de peixes maiores, ou “clientes”, a fim de comer parasitas e bactérias nocivas. A vantagem é dupla: os primeiros ganham uma refeição, enquanto os últimos ficam com a boca mais saudável. Os clientes dos faxineiros incluem peixes predadores e não predadores, e cientistas se perguntaram por que os predadores não aproveitam a limpeza para devorar seus faxineiros. A resposta: estes últimos são pequenos – o que dificilmente renderia uma refeição satisfatória – e não é fácil encontrar um deles que seja confiável. Quando desenvolvem uma relação de confiança com um faxineiro, os predadores preferem tê-lo por perto.
Aves – O papa-moscas-preto (Ficedula hypoleuca), uma espécie de pardal, guincha alto quando um predador invade sua área. O risco de atrair o predador é compensado quando outros papa-moscas-pretos atendem ao chamado e se juntam em torno do intruso, expulsando-o. O gesto, porém, envolve uma recíproca, descobriram pesquisadores letões e estonianos: essas aves só respondem ao chamado de batalha daqueles que os ajudaram antes. Os que ouviram seu apelo mas não atenderam a ele são ignorados.
Morcegos – Um biólogo norte-americano mostrou que grupos de morcegos-vampiros (habitantes do México e das Américas Central e do Sul) têm um sistema de partilha de alimentos que ajuda a garantir sua sobrevivência como espécie. Esses mamíferos alados se alimentam de sangue, e não é sempre que o conseguem; além disso, morrem se passarem dois dias sem alimento. Mas quem encontra comida a compartilha com os outros membros do grupo. Se isso não fosse feito, quatro de cinco morcegos-vampiros morreriam por ano; com a cooperação, a taxa fica em um para cada quatro. Também funciona nesse caso um esquema “olho por olho”: o que recebeu alimento de outro antes, mas não pôs seu achado à disposição do grupo, terá sua reputação manchada e não será mais convidado a participar de outras refeições.
É um roteiro no qual a opção pela violência não surge como a grande vitoriosa, conforme já havia observado o pensador austríaco Fritjof Capra, autor do best-seller O Tao da Física. “A vida, a partir do seu início, há mais de 3 bilhões de anos, tomou conta do planeta pelo estabelecimento de redes, e não pelos combates”, disse ele. O processo em curso, ressalta Capra, requer uma organização social cooperativa que alimenta redes de comunicação, estimula o compartilhamento e a experimentação e propicia um ambiente de apoio mútuo.
O grande desafio: aprender a cooperar
Aprender a cooperar, portanto, é o grande desafio da história humana neste século, afirmam Capra e o oceanógrafo norte-americano Danny Grunbaum, estudioso da cooperação na vida marinha. A humanidade já consegue pôr adiante a Wikipedia, uma enciclopédia escrita por uma infinidade de autores, mas continua a mostrar que pode fazer os esforços de cooperação naufragarem de uma hora para outra, como se verifica em congestionamentos na hora do rush ou em estradas. A tendência, no entanto, é que superemos essa etapa – inicialmente pela negociação nas situações de conflito, em seguida pela percepção cada vez mais clara do melhor caminho a seguir em termos do interesse coletivo.
“A cooperação nunca significa a ausência de conflito de interesse”, diz Grunbaum. “Ela significa um conjunto de regras para negociar conflitos de interesse de uma forma que os resolva.” Nosso aprendizado nessa área está acelerado, afirma ele, em parte porque a sociedade está se tornando bem mais integrada e a comunicação está acontecendo muito mais rapidamente no mundo. “Eu diria que os seres humanos são extraordinariamente cooperativos, e estamos ficando mais cooperativos a todo momento”, avalia o oceanógrafo.
Nesse caso, qual seria a próxima etapa da evolução humana? Para Stewart, ela estaria associada ao surgimento de uma sociedade sustentável e marcada pela cooperação em todo o mundo. “Tal como acontece com as cooperações em todos os níveis, a sociedade global diminuiria conflitos internos e competições destrutivas, incluindo a guerra e a poluição”, assinala o pensador. “Transições anteriores demonstram como isso poderia ser organizado.”
Para além do Sistema Solar
A seguir, a ampliação contínua dessa organização cooperativa levaria o homem para além do Sistema Solar. “Sempre que possível, essa expansão ocorreria por meio da articulação cooperativa com outros processos de vida, em vez da ‘construção do império’”, observa Stewart, numa referência a métodos de conquista e de subjugação dos habitantes locais como os empreendidos por espanhóis e portugueses nas Américas ou pelos humanos no filme Avatar, de James Cameron. “A possibilidade de vida surgindo em outros lugares parece elevada e, embora seja provável que os detalhes da evolução em outros planetas difiram dos nossos, a forma geral da trajetória evolutiva seria universal”, afirma o australiano.
O progresso nesse quadro resultaria numa expansão que abrangeria todo o universo, dando ao homem conhecimento sobre uma imensidão de processos vivos e informações das mais diversas origens. Stewart avalia que, nessa época, o homem chegaria a tal estágio evolutivo em termos de inteligência que “seu comando sobre a matéria, a energia e outros recursos também se expandiria, assim como seu poder para conseguir quaisquer objetivos que escolhesse”.
Conseguir qualquer objetivo significa, de certa forma, tornar-se um deus. Stewart não menciona a palavra, mas ela surge nas entrelinhas quando o pensador propõe que um desses objetivos poderia ser resolver o “problema de sintonia fina” – na sua definição, “o enigma de por que as leis fundamentais e os parâmetros do universo parecem estar sintonizados para apoiar o surgimento da vida, sabendo-se que bastariam ligeiras alterações para originar um universo em que a vida provavelmente não surgiria”. Ao entender esses mecanismos, o homem poderia tentar reproduzi-los, o que daria origem a novos universos, elaborados de modo a favorecer ainda mais o surgimento e o desenvolvimento da vida e da inteligência, num processo em princípio infindável.
“De acordo com esse cenário, nosso próprio universo está incrustado em processos evolutivos que modelam universos”, analisa Stewart. “E a vida (incluindo o homem) tem uma função e um propósito dentro desses processos mais amplos, no mesmo sentido que nossos olhos têm uma finalidade dentro dos processos evolutivos que moldaram a humanidade.”
Concorrência e seleção
O pensador australiano observa que, até o estágio atual, a evolução na Terra tem sido pautada pela concorrência e pela seleção. Essas pressões, porém, se enfraquecem diante do surgimento de uma sociedade global, pois ela não terá nenhum concorrente direto. “Desse ponto em diante, a evolução continuará a avançar se a sociedade global emergente decidir fazer avançar o processo evolutivo intencionalmente”, afirma Stewart. “A sociedade deve despertar para a possibilidade de que está vivendo no meio de um processo evolutivo direcional, perceber que a continuação do êxito do processo depende de suas ações intencionais e, então, empenhar-se ativamente para fazer esse processo avançar.” Gente disposta a cooperar e alinhada com o bem-estar da coletividade tem, portanto, perfil afinado com a sociedade do futuro. E os que fogem desse figurino, como ditadores, extremistas religiosos, racistas, xenófobos e outros inveterados pregadores e praticantes da desigualdade? Quem for incapaz de fazer a transição para os novos tempos será descartado à maneira de uma experiência evolutiva que falhou, avalia Stewart. Como, segundo ele, a humanidade já se aproxima do limiar crítico da transição evolutiva (algo que os avanços na genética e na física já estão sinalizando), a observação serve de alerta: aqueles que quiserem fazer parte do primeiro grupo devem pôr mãos e mentes à obra o quanto antes.
Vídeo: O barco das formigas – As formigas-de-fogo da Amazônia e do Pantanal desenvolveram incríveis técnicas cooperativas para sobreviver às enchentes sazonais dessas regiões. Elas se unem firmemente entrecruzando as pernas e usando suas mandíbulas para formar uma espécie de balsa viva e que não pode ser afundada, sobre a qual o inteiro formigueiro tem condições de flutuar e navegar até encontrar um margem segura. Transportam assim, a salvo, não apenas a si próprias, mas também as suas larvas e a preciosa rainha, que irá assegurar a perpetuação da comunidade.