O que é o altruísmo? Dito de forma simples, é o desejo de que as outras pessoas sejam felizes. Como diz Matthieu Ricard, filósofo francês, escritor e fotógrafo, e monge budista de linha tibetana, o altruísmo é uma ótima lente para se tomar decisões, tanto no curto quanto no longo prazo, tanto no trabalho quanto na vida. Nesta palestra ele nos explica como e por que fazer com que ele seja o nosso guia.
Vídeo: TED Ideas Worth Spreading
Fotografias: Matthieu Riccard
Tradução: Viviane Ferraz Matos. Revisão: Andrea Mussap
Após estudos de bioquímica no Instituto Pasteur, em Paris, Matthieu Ricard deixou seu trabalho como pesquisador cientista e tomou o rumo dos Himalaias, onde se tornou monge budista. Seu objetivo: buscar a felicidade, tanto no nível humano básico quanto como objeto de investigação. Adquirir o estado de felicidade, acredita ele, requer o mesmo tipo de esforço e de treinamento da mente que qualquer outro projeto existencial sério acarreta.
Suas profundas e cientificamente baseadas reflexões sobre a felicidade e o budismo foram explicadas em uma grande quantidade de livros dos quais é autor, incluindo o best-seller The Quantum and the Lotus: A Journey to the Frontiers Where Science and Buddhism Meet (O quantum e o lótus: Uma jornada às fronteiras onde ciência e budismo se encontram). Ao mesmo tempo, Matthieu Riccard produz magníficas fotografias do seu amado Tibete e da ermida espiritual onde ele vive e trabalha em diversos projetos humanitários.
Vídeo: Altruísmo, com Matthieu Riccard
Tradução integral da palestra:
Nós, humanos, temos um potencial extraordinário para o bem, mas também um imenso poder para fazer o mal. Qualquer instrumento pode ser usado para construir ou destruir. Tudo depende da nossa motivação. Por isso, é ainda mais importante promover uma motivação altruísta em vez de egoísta.
De fato, estamos enfrentando muitos desafios, atualmente. Poderiam ser desafios pessoais. Nossa mente pode ser nossa melhor amiga ou pior inimiga. Existem também desafios sociais: a pobreza em meio a abundância, desigualdades, conflitos, injustiça. E ainda há novos desafios inesperados. Há 10 mil anos, havia cerca de 5 milhões de seres humanos na Terra. Qualquer coisa que eles fizessem, a resiliência da Terra logo remediria a atividade humana. Após as Revoluções Industrial e Tecnológica, não é mais assim. Agora somos o principal agente de impacto na Terra.
Entramos no Antropoceno, a era dos seres humanos. Se disséssemos que precisamos continuar esse crescimento sem fim, esse uso ilimitado de recursos materiais, é como se este homem dissesse — e eu ouvi de um ex-chefe de Estado, não direi quem, dizer — “Há cinco anos, estávamos à beira do precipício. Hoje demos um grande passo adiante.” Portanto, esta fronteira é a mesma que os cientistas definiram como os limites planetários. E dentro desses limites, pode haver um grande número de fatores. Ainda podemos prosperar, a humanidade ainda pode prosperar por 150 mil anos se mantivermos a mesma estabilidade climática como no Holoceno, nos últimos 10 mil anos. Mas isso depende de escolhermos uma simplicidade voluntária, crescer qualitativamente, não quantitativamente.
Em 1900, como podem ver, estávamos bem dentro dos limites de segurança. No entanto, em 1950, veio a grande aceleração. Prendam a respiração, não muito, para imaginar o que vem depois. Agora, devastamos amplamente alguns dos limites planetários. Tomemos como exemplo a biodiversidade: no ritmo atual, até 2050, 30% das espécies terrestres terão desaparecido. Ainda que congelemos seu DNA, isso não será reversível. Por isso estou ali, sentado em frente a uma geleira de 7 mil metros, de 21 mil pés, no Butão. No Terceiro Polo (a cadeia dos Himalaias), 2 mil geleiras estão derretendo mais rápido que o Ártico.
O que podemos fazer nessa situação? Bem, por mais complexa que seja em termos políticos, econômicos, científicos, a questão do meio ambiente simplesmente se reduz a uma questão de altruísmo versus egoísmo. Sou marxista, da tendência Groucho. (Risos) Groucho Marx disse: “Por que devo me importar com as gerações futuras? O que já fizeram por mim?” (Risos) Infelizmente, ouvi o bilionário Steve Forbes, na Fox News, dizendo exatamente o mesmo, mas a sério. Contaram a ele da subida dos níveis dos oceanos, e ele disse: “Acho um absurdo mudar meu comportamento atual por algo que acontecerá em 100 anos”. Então se vocês não se importam com as gerações futuras, vão em frente.
Portanto, um dos maiores desafios atuais é conciliar três escalas de tempo: a economia a curto prazo, as altos e baixas do mercado de valores, o balanço de fim de ano; a qualidade de vida a médio prazo — o que é qualidade de vida em cada momento, a cada 10 anos, 20 anos? — e o meio ambiente a longo prazo. Quando ambientalistas falam com economistas, é como um diálogo esquizofrênico, completamente incoerente. Não falam a mesma língua. Agora, nos últimos dez anos, andei pelo mundo todo, encontrando economistas, cientistas, neurocientistas, ambientalistas, filósofos, pensadores no Himalaia e por todo lugar.
A mim, parece que só há um conceito que pode conciliar essas três escalas de tempo: simplesmente, ter mais consideração pelos outros. Ao ter mais consideração pelos outros, teremos uma economia solidária, em que as finanças estejam a serviço da sociedade e não a sociedade a serviço das finanças. Vocês não jogarão no cassino com os recursos que as pessoas confiaram a vocês. Se vocês têm mais consideração pelos outros, se assegurarão de remediar a desigualdade, de trazer algum tipo de bem-estar para a sociedade, para a educação e local de trabalho. Do contrário, se a nação for a mais poderosa e mais rica, mas todos são pobres, qual o sentido? E se temos mais consideração pelos outros, não prejudicaremos o planeta que temos; e no ritmo atual, não temos três planetas para continuar dessa maneira.
Por isso a pergunta é: tudo bem, o altruísmo é a resposta, isso não é novidade, mas pode ser uma solução real, pragmática? E primeiro, ele existe, o verdadeiro altruísmo, ou somos egoístas demais? Alguns filósofos pensavam que éramos irremediavelmente egoístas. Mas somos realmente todos sacanas? Isso é uma boa notícia, não é? Muitos filósofos, como Hobbes, falaram isso. Mas nem todos parecem sacanas. Ou o homem é como um lobo para o homem? Este cara não parece tão mal. É um dos meus amigos do Tibete. É muito gentil. Agora, nós adoramos cooperação. Não há prazer maior do que trabalhar juntos, certo? E não só os humanos. Então, claro, há a luta pela vida, a sobrevivência do mais apto, o darwinismo social. Mas na evolução, a cooperação — embora a competição exista, claro — a cooperação deve ser bem mais criativa para ir a níveis altos de complexidade. Somos supercooperadores e deveríamos ir mais além.
E agora, no topo disso, a qualidade das relações humanas. A OCDE fez uma pesquisa com dez fatores, incluindo a renda, tudo. O primeiro que as pessoas disseram ser o principal para sua felicidade é a qualidade das relações sociais. Não só dos humanos. Vejam essas bisavós. E a ideia de que se nos aprofundamos em nosso interior, somos irremediavelmente egoístas, isto é ciência fajuta. Não há nenhum estudo sociológico, nem psicológico, que tenha mostrado isso. Ao contrário. Meu amigo, Daniel Batson, passou a vida toda pondo pessoas no laboratório em situações muito complexas. Claro, às vezes somos egoístas, e algumas pessoas mais do que outras. Mas ele descobriu que sistematicamente, independente de tudo, há um número significativo de pessoas que se comportam de maneira altruísta, independentemente de tudo. Se você vê alguém profundamente ferido, sofrendo muito, você pode querer ajudá-lo por angústia empática — você não pode suportar, então é melhor ajudar que continuar olhando essa pessoa. Testamos isso e, ao final, ele diz que claramente podemos ser altruístas. Essa é uma boa notícia. E ainda mais, devemos olhar a banalidade da bondade. Vejam isto. Ao sairmos não diremos: “Isso é tão agradável! Não houve brigas enquanto essa multidão pensava em altruísmo”. Não, isso é esperado, não é? Se houvesse uma briga, falaríamos nisso durante meses. Portanto, a banalidade da bondade é algo que não chama a atenção, mas ela existe!
Vejamos isto. Alguns psicólogos disseram, quando contei que dirijo 140 projetos humanitários no Himalaia, que isso me dá tanta alegria, disseram: “Ah, entendo, você trabalha pelo prazer. Isso não é altruísmo. Simplesmente você se sente bem”. Pensam que este cara, ao saltar na frente do trem, pensou: “Vou me sentir ótimo quando isto acabar”? (Risos) Mas isso não é tudo. Quando o entrevistaram ele disse: “Não tive escolha, tinha que saltar, claro”. Não tinha escolha. Comportamento automático. Não é egoísta nem altruísta. Não teve escolha? Bem, pressupõe-se, esse cara não ia pensar por meia hora: “Deveria dar a mão a ele? Não dar a mão?” Ele o faz. Há escolha, mas é óbvia, imediata. E então, também ali, ele teve uma opção. (Risos)
Há pessoas que tiveram opção, como o pastor André Trocmé e sua esposa, e todo o povo de Le Chambon-sur-Lignon, na França. Em toda a Segunda Guerra Mundial, eles salvaram 3.500 judeus, deram refúgio a eles, levaram todos para a Suíça, contra toda a dificuldade, arriscando suas vidas e as de suas famílias. Portanto, o altruísmo existe.
O que é altruísmo? É o desejo de que o outro seja feliz e encontre a causa da felicidade. A empatia é a ressonância afetiva ou a ressonância cognitiva que nos diz: essa pessoa está feliz, essa pessoa sofre. Mas a empatia por si só não é suficiente. Se você se confronta sempre com o sofrimento, pode sentir angústia empática, estresse, por isso você precisa de um âmbito maior de bondade. Com Tania Singer do Instituto Max Planck, em Leipzig, demonstramos que as redes cerebrais da empatia e da bondade são diferentes. É tudo muito bem feito, então temos isso da evolução, do cuidado materno, do amor dos pais, mas temos que estender isso. Isso pode estender-se inclusive a outras espécies.
Se queremos uma sociedade mais altruísta, precisamos de duas coisas: mudança individual e mudança social. É possível a mudança individual? Dois mil anos de estudo contemplativo disseram que sim, que é possível. E 15 anos de colaboração com a neurociência e a epigenética disseram que sim, que nosso cérebro muda quando se treina o altruísmo. Passei 120 horas numa máquina de ressonância magnética. Essa foi a primeira vez, por duas horas e meia. O resultado foi publicado em muitos trabalhos científicos. Mostra, sem dúvidas, que há uma mudança estrutural e funcional no cérebro, quando se treina o amor altruísta. Só para vocês terem uma ideia: aqui está o meditador em repouso, à esquerda, fazendo meditação de compaixão, vemos toda a atividade, e o grupo de controle em repouso, nada aconteceu, em meditação, nada aconteceu. Eles não foram treinados.
Então são necessárias 50 mil horas de meditação? Não. Quatro semanas, 20 minutos por dia de meditação afetiva, consciente, já gera uma mudança estrutural no cérebro, comparado ao grupo controle. Apenas 20 minutos ao dia, por 4 semanas.
Mesmo com crianças de pré-escola. Richard Davidson fez isso em Madison. Um programa de oito semanas: gratidão, gentileza, cooperação, respiração. Podem dizer: “São só crianças da pré-escola”. Vejam após oito semanas, o comportamento pró-social, nessa linha azul. E a seguir o último teste científico, o teste do adesivo. Antes, você determina para cada criança quem é o melhor amigo da classe, o menos favorito, o desconhecido, e uma criança doente, e eles têm que dar os adesivos. Antes da intervenção, eles dão a maioria dos adesivos para o melhor amigo. Crianças de 4, 5 anos, 20 minutos, 3 vezes por semana. Depois da intervenção, mais nenhuma discriminação: o mesmo número de adesivos ao melhor amigo e à criança menos favorita. Isso é algo que devíamos fazer em todas as escolas do mundo.
Para onde vamos a partir daí?
Quando o Dalai Lama soube, disse a Richard Davidson: “Vá a 10 escolas, 100 escolas, à ONU, ao mundo todo”.
E, para onde vamos a partir daí? A mudança individual é possível. Temos que esperar por um gene altruísta na raça humana? Isso levará 50 mil anos, demais para o meio ambiente. Felizmente, existe a evolução da cultura. As culturas, como especialistas mostram, mudam mais rápido que os genes. Essa é a boa notícia. O comportamento relacionado à guerra mudou drasticamente com o tempo. A mudança individual e cultural se moldam mutuamente, e sim, podemos alcançar uma sociedade mais altruísta.
Para onde vamos a partir daí? Eu voltarei ao Oriente. Agora tratamos 100 mil pacientes ao ano em nossos projetos. Temos 25 mil crianças na escola, 4% a mais. Algumas pessoas dizem: “Isso funciona na prática, mas funciona na teoria?” Sempre há o desvio positivo. Então também voltarei à minha ermida para encontrar os recursos internos para servir melhor aos outros.
Mas a nível mais global, o que podemos fazer? Precisamos de três coisas. Aumentar a cooperação: aprendizagem cooperativa na escola, em vez de aprendizagem competitiva; cooperação incondicional dentro das empresas, pode existir certa competição entre empresas, mas não dentro delas. Precisamos de harmonia sustentável. Adoro esse termo! Nada de crescimento sustentável. Harmonia sustentável significa que agora reduziremos a desigualdade. No futuro, faremos mais com menos, continuaremos crescendo qualitativamente, não quantitativamente. Precisamos da economia solidária. O Homo economicus não pode lidar com a pobreza em meio a abundância, não pode lidar com o problema do bem comum da atmosfera, dos oceanos. Precisamos da economia solidária. Se um diz que a economia deve ser compassiva, dizem: “Não é trabalho nosso.” Mas se você diz que eles não se importam, isso é mal visto. Precisamos de compromisso local, e responsabilidade global. Precisamos estender o altruísmo ao outro 1,6 milhão de espécies. Os seres sencientes são cocidadãos neste mundo. E temos que nos atrever ao altruísmo.
Portanto, vida longa à revolução altruísta! Viva a revolução do altruísmo!
Obrigado.