Integrando sabiamente o antigo e o contemporâneo, a Turquia moderna dá lições de como chegar ao futuro sem abdicar do passado
Por Luis Pellegrini, fotos de Lamberto Scipioni, de Istambul, Turquia
No saguão otomano do Hotel Four Winds de Istambul, duas turistas brasileiras bebem raki – o tradicional licor de anis – e comentam, surpresas: “Nunca pensei que numa capital muçulmana poderíamos caminhar por toda parte, a qualquer hora do dia ou da noite, sem risco de ser assaltadas ou agredidas. Imagine duas mulheres fazendo a mesma coisa em São Paulo…”
Espanto bem justo. O Four Winds também é um susto. Outrora prisão gigante, situada no coração da velha Istambul, cenário horrível do filme O Expresso da Meia-Noite, virou hoje um cinco-estrelas digno das histórias encantadas de Sherazade. Os arquitetos que o assinam pertencem à nova geração de artistas turcos preocupados em reler, em chave moderna, “mas com muito orgulho e respeito”, os estilos clássicos bizantino e otomano.
Orgulho e respeito pela própria história, cultura e tradição, por sinal, são lugares-comuns na Turquia. Os narcisos ocidentais fariam melhor se prestassem mais atenção ao que está acontecendo nessa república islâmica. O boom econômico é evidente: prédios antigos são reformados, bairros pobres perdem suas velhas casinhas de madeira marrom e viram palco de confortáveis obras urbanísticas, os hotéis estão cheios; os bazares fervem de gente, bares e restaurantes idem, mexer com informática virou mina de ouro e há lan houses em toda parte.
A girar pelas ruas, em meio aos moradores locais e bandos de turistas, há grupos de homens de cara mongol, cabeças cobertas por inconfundíveis chapéus de pele de cordeiro. São executivos, políticos, novos-ricos dos países muçulmanos da ex-União Soviética. Homens de negócios do Turquestão, do Tajiquistão, do Usbequistão, do Casaquistão que, nos últimos anos, elegeram Istambul como privilegiado balcão de negócios internacionais. Por quê? À parte a questão estratégica – a Turquia já tem um pé bem fincado na Comunidade Europeia e aguarda apenas certas burocracias para lá plantar também o outro –, o povo turco, originário da Ásia Central, é seu irmão de raça, de alma e de religião. As línguas desses países são aparentadas do turco, e neles o próprio turco – e não o inglês, o francês ou o russo – é uma espécie de língua franca.
Basta examinar um mapa-múndi para se entender por que a Turquia é, desde sempre, chamada de “Encruzilhada do Mundo”, de “Porta da Europa” para os orientais, de “Porta da Ásia” para os ocidentais. Há milênios o mundo passa por ela na forma de caravanas da rota da seda, comboios, exércitos, e os turcos aprenderam a tirar proveito disso desde que ali chegaram, há mais de um milênio.
Habituaram-se a acolher todo tipo de invasor, pacífico ou não, bem como turistas e refugiados das mais variadas procedências. A leva mais recente de exilados é de ex-oficiais da Marinha russa. Eles são fáceis de reconhecer: altos, louros, belos corpos de bailarinos, com suas caras brancas e seus olhinhos puxados de raposas vigilantes. Andam para lá e para cá, em busca de qualquer coisa que lhes possa render algumas liras turcas. Passam horas sentados nos bares, tomam café turco e fumam Marlboro. São os Dimitris, Ivans, Boris e Mikhails escapados aos frangalhos das tropas russas, e com um único desejo em mente: penetrar em algum país da Europa rica. Para eles, a Turquia é a porta.
Aventureiros de todos os tipos sempre fizeram parte do fascínio de Istambul. Hoje, chega-se a ela de avião, de barco – há inúmeros cruzeiros pelo Mediterrâneo que percorrem as costas turcas –, de carro, através da Grécia ou da Bulgária. O mítico Orient Express, o trem que na virada do século e durante muitas décadas atravessava toda a Europa até chegar a Istambul, já não corre sobre seus trilhos. Mas, na estação ferroviária de Istambul, bem à entrada do Estreito de Bósforo, lá está a plataforma art nouveau onde os passageiros subiam e desciam. A estação abriga o bar, junto à plataforma, onde drinques, chá e café ainda são servidos, bem como o restaurante chique, de boa comida, com suas cadeiras austríacas e seus vitrais arabescados. E, para deleite dos nostálgicos, funciona ainda em toda a sua glória o Pera Palace Oteli, o hotel dos passageiros do Orient Express.
Construído no final do século 19 pela companhia Wagons-Lit, proprietária do Orient Express, o Pera Palace é uma obra-prima inteiramente preservada da arquitetura e do mobiliário vitorianos. Por seus salões, corredores e quartos passou boa parte do mundo que contava durante toda a primeira metade do século passado. Muitos quartos têm placas douradas nas portas indicando o personagem habitué que ali esteve. Greta Garbo, Pierre Loti, Jacqueline Kennedy, Mata Hari, reis e rainhas, czares e czarinas, embaixadores, escritores e poetas. Dois quartos são especiais: o 411, que a escritora Agatha Christie ocupou durante as muitas vezes que visitou Istambul, e onde escreveu um romance célebre, Assassinato no Orient Express. O outro é a suíte de Kemal Ataturk, o fundador da Turquia moderna, transformada em minimuseu com mobiliário original, roupas, documentos e objetos pessoais do líder turco.
Istambul é barroca. Só perde no estilo para Roma. Nos lados de suas ruas que sobem e descem pelas encostas de altas colinas, o espaço é todo ocupado por uma profusão de mesquitas, bazares, lojas e mais lojas de tapetes, mercados de peixe e especiarias, hamans – as tradicionais casas de banhos turcos, que mais parecem palácios de mármore branco inchados de vapor –, museus, casas de chá velhas de muitos séculos. É preciso dedicar pelo menos meia hora a uma delas. Particularmente as mais tradicionais, na Rua Kabasakal, ao redor da Mesquita Beyazit. Nelas os homens se reúnem, ao cair da tarde, para fumar narguilé e discutir os temas do momento. Política está na ordem do dia. A Turquia inteira sabe que mais cedo ou mais tarde o país ingressará na União Europeia. E, quanto a isso, as opiniões se dividem…
Enquanto isso, os turistas vão chegando aos magotes, diretos ao grande templo do sultão Suleiman, o Magnífico, a Mesquita Azul – por causa do azul predominante de seus afrescos. A Turquia é o único país islâmico onde a entrada de não muçulmanos nas mesquitas é permitida por lei. Elas são festivais de minaretes, cúpulas arredondadas, azulejos, lampadários gigantes, imensos tapetes vermelhos, e multidões masculinas que, nas horas consagradas à oração, cumprem suas prostrações a Alá. É preciso se habituar: todos os dias, ao nascer do sol, acorda-se com a cantoria dos muezins. Amplificada por centenas de alto-falantes, a voz deles sai lá de cima dos minaretes e cobre toda a cidade num chamado à prece tão antigo quanto o próprio Islã.
Vai-se depois à igreja bizantina de Santa Sofia, bem em frente à Mesquita Azul. Durante séculos Aya Sofya foi o maior edifício do mundo. Ostenta até hoje mosaicos cristãos de tirar o fôlego. Logo ali, à direita de Santa Sofia, fica a entrada do Topkapi, palácio-cidade dos sultões otomanos. Depois de vasculhar os aposentos dos vizires, o harém onde viviam reclusas as 400 mulheres do sultão, as galerias de preciosos objetos de arte com sua estrela máxima, o diamante Topkapi, coroa-se a visita no bar do museu, com um chá perfumado e confeitos de amêndoas, especialidade da patisserie turca.
Visita-se em seguida a cisterna de Yerebatan, verdadeira cidade aquática subterrânea, sob a Igreja de Santa Sofia, com centenas de colunas de pórfiro, mármore e granito que saem da água e sustentam o teto, numa das mais arrojadas obras de engenharia da antiguidade.
Um pouco de agito popular? Vai-se a pé até o Kapali Çarsi, o grande bazar coberto de Istambul. Quem acha que shopping center é invenção norte-americana engana-se. É coisa turca. A prova é esse mercado, talvez o mais célebre do mundo. Estruturado como uma cidade dentro da cidade, possui 4.399 lojas, 2.195 oficinas de artesanato, 497 bancas, 20 hamans, 12 armazéns, 18 fontes de água, uma escola elementar e uma mesquita. Os nomes das ruas, sempre muito iluminadas, indicam as mercadorias à venda: rua dos joalheiros, dos tapeceiros, dos couros, dos blue jeans, dos temperos, dos tecidos…
Um pouco de vida marinha? Basta passear ao longo do cais do Corno de Ouro, braço de mar que separa as duas colinas principais de Istambul – Suleimanye, à esquerda, e Beyoglu, à direita. Apesar do intenso trânsito de barcos sobre as águas, todo mundo pesca por ali. Barcos-cozinha, com seus chefs e garçons vestidos à la turca, servem peixe frito na hora.
Mas é melhor, na hora da fome, ir a um bom restaurante. Atenção aos meze (aperitivos), se o objetivo for saborear também o prato principal que vem depois. Um meze pode cobrir a mesa com 20 ou 30 pratinhos de iguarias: queijos da Anatólia, berinjelas, pastas de gergelim, peixinhos fritos ou tipo escabeche, molhos picantes. É bom guardar espaço para os pratos fortes que vêm depois, talvez um kebab (carne grelhada); ou uma almôndega gigante preparada com molho de pistache; ou um peixe assado todo cercado por frutos do mar. Sem temer os vinhos e as cervejas turcas. São muito bons. A Turquia é muçulmana, mas não é santa.
Os turcos amam tanto estar à mesa e comer bem que em Istambul existe um bairro inteiro só de restaurantes de peixe. Chama-se Kumkapi, à entrada do Bósforo, muito popular por sua atmosfera vivaz, cheia de música e dança.
Hotéis? O Ciragan – ex-palácio de um sultão –, o Conrad, o Hilton e o Four Winds são cinco- estrelas de primeira linha. O Pera Palace deve ser visitado, mas seus quartos fin-de-siècle não primam pelo conforto. Melhor tentar uma vaga no Yesilev Oteli (tel. 212-517-6785), esplêndida casa da nobreza otomana, ao lado de Santa Sofia, com mobiliário original e um jardim interno encantador onde se janta à luz de velas. Ou o Aya Sofya Pansiyonlar (tel. 212-513-3660), bem ao lado do Topkapi, um conjunto de casinhas do século 18 que, por fora e por dentro, conservam todo o requinte do estilo.
Istambul merece pelo menos uma semana. Se houver tempo, vale a pena uma excursão de dois dias à Capadócia, cheia de casas escavadas na pedra e incríveis cidades subterrâneas, onde surgiram as primeiras comunidades cristãs. E, nos meses quentes, um giro – de preferência de automóvel – pelas praias da Costa Turquesa, do porto de Antalya até Kusadasi, onde ficam as ruínas da cidade grega de Éfeso. Ou a qualquer outro lugar da bela Turquia. Onde a hospitalidade é dever religioso, e cada turco que nos abre os braços não quer apenas vender um tapete. Quer também recitar os versos imortais de Jalaludim Rumi, poeta e fundador da ordem dos dervixes dançarinos:
Venha, seja você quem for e o que for, venha:
Pagão, adorador do fogo, pecador idólatra, venha.
Nosso mosteiro não é lugar de desespero e penitência.
Venha, ainda que cem vezes tenha quebrado a promessa, venha.
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www.ccibt.org.br/
Originally posted 2011-01-04 19:00:08.