Por: Luis Pellegrini
Fotos: Lamberto Scipioni
Wolfgang Amadeus Mozart certamente tinha a voz embargada quando exclamou “Os checos me compreendem!”, após o estrondoso sucesso da estreia da sua ópera Don Giovanni, a 29 de outubro de 1787, no Teatro Stavovské Divadlo, de Praga. Ele tinha 31 anos de idade, e a casa de espetáculos, hoje chamada de Teatro dos Nobres, era e ainda é uma das mais importantes da nação que hoje se chama República Checa. Aquela noite assinalou talvez o ápice glorioso da carreira do compositor. O coroamento da fieira de muitos outros sucessos que marcaram a presença de Mozart em terras checas. Presença que, por sinal, perdura até os dias hoje, sem dar sinal de arrefecimento. Como todos os anos nos meses quentes de verão, o Teatro dos Nobres oferece diariamente a encenação do Don Giovanni, num sistema de revezamento de elencos de cantores e músicos da orquestra. Basta reservar seu ingresso com antecedência: a sala está sempre lotada. Quem não quer apreciar essa ópera sentado na mesma poltrona onde, possivelmente, Mozart também se sentou?
Mozart tinha razão: os checos não apenas o compreendiam, como o amavam. Talvez até mais que em sua própria terra natal, a vizinha Áustria. Basta contar que quando ele morreu, em Viena, no dia 5 de dezembro de 1791, e em Salzburgo, onde nasceu a 27 de janeiro de 1756, as homenagens foram bem parcas. Houve um rito fúnebre na catedral de Viena e, em seguida, como chovia e fazia muito frio, o corpo do jovem compositor foi simplesmente deixado no cemitério e acabou sendo enterrado numa fossa comum destinada a indigentes. Mas em Praga, assim que chegou a notícia, seus amigos organizaram uma monumental missa de despedida na Igreja de São Nicolas. Quem visita essa igreja, no Bairro Pequeno (Malá Strana), um dos mais tradicionais de Praga, se espanta ao imaginar como couberam lá dentro mais de quatro mil pessoas que se acotovelaram para participar da homenagem a Mozart.
Praga e Mozart, uma paixão fulminante
Na Boêmia – que era então o nome da atual República Checa -, Mozart morou também nas cidades de Olomouc e Brno. Na primeira, a estada foi muito longa. Ainda menino, ele ficou lá durante meses, com a família, para fugir de uma epidemia de peste que grassava na Áustria. Morou também, por menos tempo, na cidade de Brno. Mas para ele nada se comparava à capital, Praga.
Mozart se apegou a Praga como a pouquíssimas outras cidades por onde andou na sua curta existência de musico itinerante. Não apenas porque os praguenses gostavam dele e da sua música, mas sobretudo porque ele se identificava totalmente com alguns aspectos fundamentais da personalidade da cidade e do povo que a habita. Passei lá algumas semanas, com a intenção de descobrir qual era o mistério desse encantamento recíproco entre o compositor e Praga. Um encantamento que foi capaz de influir até mesmo no espírito da sua obra musical. Resultado: acabei encantado eu também. Sem falar no fotógrafo Lamberto Scipioni, que há muito mais tempo já se deixara seduzir pelo charme da “Cidade das Cem Torres”, como Praga é chamada.
Como Mozart, Praga possui um evidente caráter duplo, um misto de sagrado e profano que encanta e excita a mente, o coração e os sentidos. Ela é uma cinderela fascinante, embora diferente daquela narrada nos contos de fadas. De dia, sob a luz do sol, as cores vivas do seu casario antigo, dos palácios e igrejas rebrilham e a cidade aparece nas vestes de jovem adolescente. Mas, quando a noite cai, Praga surge como dama de vermelho e negro, maga misteriosa, e sob seu poder tudo se transfigura e o dourado do sol se torna prata da lua.
Não à toa o filósofo André Breton declarou em 1935 que Praga era “a capital mágica da velha Europa”. Essa magia não vem apenas dos astrólogos, magos e alquimistas tratados a pão-de-ló na corte do rei Rodolfo II, célebre consumidor de ocultismos, no final do século 16. Nem tem a ver com a lenda judaica do Golem, surgida mais tarde, já em época romântica – o Golem era uma espantosa criatura artificial que os magos criavam com suas artes para que se transformasse numa espécie de serviçal. Tampouco tem origem na simpática e sinuosa Rua dos Alquimistas, onde fica a minúscula casa do escritor Franz Kafka. Não, a verdadeira magia de Praga deriva do amálgama das múltiplas culturas que se fundiram naquela região, através das invasões, dos comércios e dos acontecimentos vividos pelos homens e mulheres aguerridos e orgulhosos que forjaram sua personalidade.
O mistério de Praga, no entanto, não é obscuro. Ele aparece em plena luz ao turista que passa pela Ponte Carlos, de 1380, a mais antiga da cidade, sobre o rio Moldava. Monumento nacional, ela ostenta de ambos os lados nada menos que 30 conjuntos de estátuas em bronze das quais a protagonista é a de São João Nepomuceno. Dizem que beijar ou acariciar o cachorro que permanece fiel aos pés do santo traz sorte e anula pecados. Assim sendo, embora a cor do santo seja o verde patinado do bronze antigo, seu cão é totalmente dourado de tantas mãos que lhe alisaram o pelo metálico. Da ponte descortina-se o panorama das muitas torres de Praga. Encostados nas balaustradas, e como acontece desde a Idade Média, há sempre uma porção de artistas populares, músicos que tocam e cantam, pintores e caricaturistas que tentam vender seus quadros, artesãos que aproveitam o tempo para produzir mais alguma peça, malabaristas e palhaços fazendo suas graças. Presenças que humanizam e aquecem a rigidez das pedras e a frieza dos bronzes. O espectro do jovem Mozart ainda perambula por ali, cruzando a ponte em direção à Cidade Velha, seu bairro preferido em Praga.
Um cenário de teatro barroco
Na Ponte Carlos, basta elevar a mirada para se ver a colina de Petrin e o castelo lá no alto, eminência gigantesca que domina a cidade toda. Pode-se ler de imediato o desenho do espaço urbano, a tal ponto esse lugar se oferece como grande cenário de teatro barroco.
Os mesmos ares boêmios sopram também logo depois da ponte, ao se entrar nas ruelas estreitas da Cidade velha, repleta de fachadas barrocas, de cafés e bistrôs. A maioria deles decorada com móveis de outros tempos e com grandes toldos que anunciam a bebida nacional checa: a cerveja loira tipo Pilsen, servida em jarras de meio litro. As mesas desses bares são excelentes postos de observação do vai-e-vem nas ruas, sempre apinhadas de gente que se move a pé. As ruas da Cidade Velha certamente não foram pensadas para os modernos automóveis, ônibus e motos…
Na praça da Prefeitura, de hora em hora, mas sobretudo ao meio-dia, as pessoas se aglomeram e elevam o olhar para observar o ritual do Relógio Astronômico. Mozart morou a poucas quadras dali e, fascinado, deve ter parado muitas vezes no local. Quando os ponteiros do relógio se juntam, os sinos dobram, uma portinhola se abre e os doze apóstolos saem por ela, um a um, com suas roupagens e atributos pessoais (São Pedro, claro, carrega uma enorme chave) e saúdam os presentes. Conclui o cortejo o galo dourado que, lá no alto das engrenagens, cacareja e bate as asas. Construído em 1410 pelo relojoeiro Mikulás de Kadari, o complexo ocupa toda a parede externa de uma torre medieval. As partes mais antigas ainda em funcionamento são a máquina mecânica do relógio e a esfera astronômica que marca com grande precisão a posição dos corpos celestes.
Fundada no século 9, a história de Praga oferece uma continuidade excepcional. A grande harmonia urbanística e arquitetônica que a caracteriza ainda hoje é o produto final disso. Poupada de bombardeios na Segunda Grande Guerra, a capital da República Checa permanece como uma testemunha única da história europeia. Sempre foi a capital política do ducado, e depois do reino da Boêmia. Tornou-se praticamente a capital política de toda a Europa entre 1346 e 1378, quando foi residência imperial de Carlos IV de Luxemburgo, Imperador do Santo Império. Criado na corte da França, esse rei quis fazer de Praga uma segunda Paris, num espaço muito amplo onde floresceu o esplendor da arquitetura gótica do século 14, estilo que predomina na parte mais antiga da cidade até os dias de hoje.
Compreender o sentido do mundo
Rodolfo II, da dinastia austríaca dos Habsburgos, nela estabeleceu, de 1575 a 1612, um dos grandes centros europeus do Renascimento, atraindo para lá uma multidão de pensadores, artistas e escritores, provenientes de toda a Europa, e todos empenhados num enorme esforço para “compreender o sentido do mundo”.
Tal atmosfera perdurou ao longo dos séculos seguintes e marcou desde então a própria personalidade de Praga e dos seus moradores. Foi certamente nesse contexto que lá residiu, por vários períodos, Wolfgang Amadeus Mozart. Villa Bertranka, o casarão que quase sempre o hospedava, é aberto à visitação pública e hoje virou museu dedicado ao compositor. Está quase intacto, com toda a arquitetura e o mobiliário clássicos que asseguravam o conforto de Mozart. Foi lá que ele terminou a composição do Dom Giovanni, sua obra prima. Não muito distante, no coração da Cidade Velha, o atual Teatro dos Nobres também foi muito pouco modificado ao longo dos restauros. Há pouco mais de cem metros do teatro está um apartamento onde Mozart preferia ficar durante os períodos dos ensaios de suas obras em Praga. Basta perguntar onde fica a casa de Mozart, e as pessoas indicam. Há uma placa em letras douradas designando o local. Conta-se que Mozart fez grande amizade com um coetâneo checo que morava exatamente no prédio do outro lado da rua, e que os dois conversavam em voz alta até a madrugada, cada um da sua janela, para desespero dos vizinhos.
A criação da Checoslováquia, em 1918, apenas confirmou, na forma de um Estado independente, as posições de autonomia conquistadas ao longo dos séculos precedentes. Mas, de 1938 a 1989, os dois totalitarismos invasores – o alemão e o soviético – quiseram extrair Praga e toda a Boêmia da Europa ocidental. A ocupação alemã, de 1939 a 1945, foi demasiado curta para conseguir isso. O comunismo, imposto aos checos em fevereiro de 1948, a integrou num bloco oriental, brutal e totalmente ignorante das suas tradições históricas, culturais e anímicas. Os invasores russos tentaram tudo para quebrar as instituições democráticas, a vida social. A língua russa tornou-se praticamente o idioma oficial, de ensino obrigatório, e a cidade empobrecida, imersa na burocracia e na corrupção estatal, foi obrigada pela primeira vez a se descuidar do seu imenso patrimônio arquitetônico. Ele só pode ser restaurado e salvo a partir de 1989, quando a liberdade voltou a reinar na república.
Uma capital religiosa
A alcunha de “cidade das cem torres” é motivo de orgulho para os checos. Essas torres não são apenas decorativas, mas sim testemunhas de uma vida religiosa intensa. O cristianismo é a religião dominante desde o século 8. São Venceslau, duque da Boêmia entre 921 e 935, consolidou na cidade a aliança entre dinastia real e religião. Logo depois, no reinado de Carlos IV, Praga se encheu de mosteiros e igrejas. A vida cultural já era intensa, antes mesmo da fundação por Carlos IV da universidade que leva seu nome. Primeira universidade da Europa central, ela também foi, até o início do século 15, a única do império.
Desde a Idade Média, os judeus estiveram presentes em Praga, vivendo num bairro separado, dotado de suas próprias instituições e com o direito de praticar livremente as suas tradições religiosas. A comunidade judaica de Praga abriu-se ao mundo moderno no século 19, assimilando-se com rapidez, integrando-se na sociedade alemã e depois, no final desse século, igualmente ao nacionalismo checo. O nazismo eliminou cerca de 90% da população de 130 mil judeus que ocupavam o bairro. Os que conseguiram se salvar emigraram para outros países europeus ou para as Américas (o Brasil acolheu parte deles). Mas o velho cemitério judeu, um dos mais antigos, belos e melhor conservados de toda a Europa, permaneceu em seu lugar, intacto. Bem como as sinagogas muito antigas que hoje fazem parte da paisagem urbana de Praga.
Vida artística e intelectual
Praga é uma extraordinária cidade-museu, perfeita para ser descoberta em caminhadas a pé. Todos os períodos artísticos, desde a arte romana até a arquitetura mais contemporânea nela estão representados. O patrimônio cultural da cidade é simplesmente impressionante. Não existem apenas alguns poucos edifícios góticos, mas sim dois bairros inteiros: o Castelo e a Malá Strana (Cidade Velha). Eles convivem perfeitamente com extensas áreas de arquitetura barroca, edificada no século 17. A arte dos séculos 19 e 20 também não se restringe a alguns edifícios isolados, mas está presente em ruas inteiras, em bairros inteiros dedicados à arquitetura do romantismo e do modernismo. No centro da cidade, ao lado de belas construções como o Hotel Europa, se eleva a Prefeitura, obra-prima absoluta do estilo Secessão. No começo do século 20, e no período entre as duas grandes guerras, desenvolveu-se um estilo funcionalista, influenciado pelas regras da Bauhaus e dos primeiros modernistas alemães, e também pelo cubismo. O período comunista constituiu um parêntese catastrófico com o surgimento de periferias mal construídas, cheias de prédios cinzentos feitos de paredes pré-fabricadas de concreto armado. Mas quando a independência voltou, grandes arquitetos internacionais voltaram a se dedicar a Praga, produzindo obras muito interessantes, no estilo mais contemporâneo, como é o caso da Casa que Dança, projetada por Frank Gehry.
A suntuosidade dos museus de Praga brilha na Galeria Nacional, com os museus de Arte Antiga, o museu do século 19, e também do Museu de Arte Contemporânea recentemente inaugurado, o segundo na Europa central, após Budapeste.
Se os turistas ocidentais – inclusive um número crescente de brasileiros – se aglomeram nas ruas da cidade rapidamente modernizada, se hoje jovens provenientes das três Américas, alemães, franceses, italianos ou ingleses decidem estudar e viver alguns anos em Praga, é porque na cidade sopram ventos realmente particulares , carregados de ricas tradições históricas, do charme da vida quotidiana, de uma sociabilidade alegre que foi recuperada. A civilização que encontramos em Praga, e em toda a república Checa, é a mesma do resto da Europa Ocidental, porém com mais calor humano, mais contato com a natureza esfuziante das florestas e dos rios da Boêmia Central. E tudo movido por uma gastronomia farta, cheia de sabores antigos, onde as regras homeopáticas da Nouvelle Cuisine parecem ser abominadas. Haja visto as enormes porções de pato, marreco, lombinhos de porco, embutidos, queijos, chucrutes, massas e pães que são servidas na maior parte dos restaurantes. E tudo regado a muita cerveja Pilsen. Em Praga, fica fácil perceber por que Mozart se apaixonou por ela, e ela por ele…
Serviço: A oferta de hotéis em Praga é muito grande e de boa qualidade. Para quem deseja uma sugestão, indicamos o Four Seasons Hotel, instalado num sítio privilegiado, à beira do rio Moldava, entre a Ponte Carlos e a entrada da Cidade Velha. Cinco estrelas com todos os confortos modernos, todos os seus quartos têm vista para o rio e para o castelo. À direita do hotel, existe um pequeno parque na margem do rio. O lugar é mágico, e o panorama que se contempla, bem como a sua atmosfera de magia antiga, sobretudo à noite, fazem dele um sítio inesquecível. Endereço: Veleslavínova 1098/2a, 110 00 Praga 1-Staré M?sto, República Checa.Tel.+420 221 427 000. Site: www.fourseasons.com/prague/
Galeria de imagens: O fotógrafo Lamberto Scipioni selecionou algumas fotos, dentre as muitas centenas que fez, em Praga, Olomouc, Brno e Karlovy Váry, as principais cidades que Mozart frequentou na atual República Checa.