“O mundo nos dá lixo, nós retribuímos com música”. Não se trata de um slogan, mas da pura verdade. A Orquestra de Instrumentos Reciclados, surgida na favela de Cateura, na periferia de Assunção, Paraguai, é a primeira no mundo a nascer de… detritos
Por: Luis Pellegrini
O cenário é o de Cateura, favela que cresceu ao redor de um aterro sanitário na periferia de Assunção, Paraguai. Jovens moradores desse lugar de extrema pobreza descobrem possuir vocação musical, graças a um professor, Flávio Chavez, e a um músico, Luis Szaran. Os dois decidem criar uma orquestra com os garotos de Cateura. Os moradores recebem a ideia com entusiasmo, mas… como arranjar dinheiro para comprar instrumentos musicais? E acontece a surpresa: numa das ruelas da favela mora Nicolas Gomez, um artesão capaz de fabricar instrumentos com peças encontradas no entulho. E a música aparece, como mostra o vídeo abaixo.
O vídeo é a introdução a um documentário que está sendo produzido e que, em poucos dias, conseguiu obter 214 mil dólares de doações feitas por usuários da rede através do site de crowdfunding Kickstarter. Parte da soma obtida será usada para terminar o documentário. O que sobrar servirá para ajudar a bancar um tour da Orquestra de Instrumentos Reciclados.
Parte do naipe de cordas da orquestra de câmera de Cateura
Durante os ensaios da Orquestra de Reciclados, basta ouvir e olhar ao redor para entender – não sem um certo espanto. O sons de uma guitarra clássica provêm de duas grandes latas de goiabada justapostas. Uma máquina de raio-X usada serve de base para um conjunto de percussão. Uma velha saladeira de alumínio e cordas afinadas com pedaços do que já foi uma mesa elegante se transformaram em um violino. Tampas metálicas de garrafas de cerveja funcionam perfeitamente bem como chaves para um saxofone.
Composta de 30 crianças e adolescentes, a orquestra de câmera usa esses e outros instrumentos confeccionados a partir de materiais reciclados encontrados em um aterro sanitário de onde os seus pais tiram o sustento como catadores de lixo. Da orquestra e seus instrumentos a música que se ouve é a de Beethoven e Mozart, Vivaldi e Bach, Henry Mancini e os Beatles. Às vezes há também incursões no repertório de Frank Sinatra e no das polcas e guarânias paraguaias.
Alguns instrumentos feitos com material reciclados do lixão de Cateura, dentre os que foram expostos no Museu dos Instrumentos Musicais, nos Estados Unidos
Rocio Riveros, 15 anos, diz que levou um ano de estudos para aprender a tocar sua flauta, feita de pequenas latas soldadas. “Agora, já não posso mais viver sem essa orquestra”, ela diz.
Correm mundo as notícias sobre esses garotos músicos de Cateura – uma vasta favela na periferia de Assunção, onde 25 mil famílias muito pobres sobrevivem como catadores de lixo.
Fazendo o impossível
Os jovens da “Orquestra de Instrumentos Reciclados de Cateura” já tocaram no Brasil, Panamá e Colômbia, e no Museu do Instrumento Musical (Musical Instrument Museum) em Phoenix, Arizona, EUA.
“Queremos encontrar um meio para que essas crianças e suas famílias possam sair da favela. Assim, estamos fazendo o impossível para que possam viajar para fora do Paraguai, para que possam ser reconhecidas e admiradas”, diz Flávio Chávez, um assistente social e professor de música que deu início à formação da orquestra.
A conexão com o museu norte-americano foi feita pela cineasta documentarista paraguaia Alejandra Amarilla Nash. Ela e a produtora Juliana Penaranda-Loftus acompanharam as movimentações da orquestra nos últimos anos, para a produção do documentário “Landfill Harmonic”, realizado com extrema carência de recursos.
O documentário ainda não está completo. Mas há poucos meses as cineastas criaram uma página no Facebook e publicaram um curto trailer no You Tube e no Vimeo que se tornou viral, obtendo rapidamente mais de um milhão de acessos.
Transformar o sonho em realidade
A comunidade de Cateura não poderia ser mais marginalizada. Mas a música que vem do lixo agora faz com que essas famílias acreditem num futuro diferente para seus filhos.
“Graças à orquestra, estivemos no Rio de Janeiro. Tomamos banho de mar, fomos às praias de Copacabana e Ipanema. Nunca pensei que meus sonhos iriam se tornar realidade”, diz Tânia Vera, 15 anos, violinista que vive num barraco à beira de um riacho que serve de esgoto para a comunidade.
A mãe de Tânia Vera sofre de várias moléstias, seu pai abandonou a família, e sua irmã mais velha deixou a orquestra após engravidar. Tânia persiste, e agora quer ser também médica veterinária, além de instrumentista musical.
A orquestra é fruto da imaginação de Chavez. Esse idealista de 38 anos abriu uma escolinha de música há cinco anos em Cateura. Sua esperança era conseguir manter pelo menos alguns jovens fora do mundo das drogas e da delinquência. Mas ele possuía apenas cinco instrumentos para compartilhar, muitas vezes parte dos jovens que vinham às aulas não podiam sequer praticar. Foi aí que Chavez pediu a um dos catadores de lixo, Nicolas Gomez, para fazer alguns instrumentos a partir de materiais recicláveis, de modo a manter as crianças ocupadas. “Só frequentei a escola até a 5ª série, e depois tive de trabalhar como quebrador de pedras em uma pedreira”, diz Gomez, 48 anos. Mas “se alguém me der instruções precisas, sou capaz de construir um helicóptero!”
Vários instrumentos que Gomez criou foram exibidos no Museu dos Instrumentos Musicais, em Phoenix, Arizona, ao lado dos pianos de John Lennon e das guitarras de Eric Clapton.
“Um novo sentido para minha vida”, é o que afirma Ada Rios, violinista de apenas 14 anos e dona de um grande sorriso. “A Orquestra de Instrumentos Reciclados realmente mudou os rumos da minha existência. Em Cateura, infelizmente, a maior parte dos jovens não tem oportunidade de estudar, porque têm de trabalhar para ajudar as famílias, ou então caem muito cedo no vício do álcool e das drogas”. Para ela, e para quase todos os demais membros da Orquestra, a música representou um caminho de salvação.
Vídeo: