Ritos e festas populares contam a mais colorida, vivaz e brilhante história da cultura e da psicologia dos povos. Isso é particularmente verdadeiro na Itália, cujo acervo de eventos tradicionais do gênero é um dos mais ricos do mundo. Não há dia do ano em que, em algum lugar da Península, a população não saia às ruas para comemorar sagras agrícolas, esportivas, religiosas, culturais. A maior parte dessas celebrações tem origem muito antiga, e muitas remontam inclusive aos tempos pré-cristãos. Na foto de abertura, o Pálio de Siena.
Por Luis Pellegrini
Fotos: Lamberto Scipioni (*)
A Itália possui um dos mais ricos calendários de festas e ritos populares em todo o mundo. Festa popular, na Itália, é coisa séria, e no país esses grandes eventos de massa são momentos importantes de reencontro dos membros das comunidades nas quais elas surgiram e permanecem vivas. Cada indivíduo da comunidade, ao participar dessas festas, confirma e se sente parte integrante do conjunto social ao qual pertence.
Inúmeros estudos foram desenvolvidos para se descobrir por que o povo italiano é tão ligado a esses ritos de pura extração popular. Mas basta viver algum tempo na Itália para se descobrir a resposta: extrovertido e emotivo, o italiano necessita de manifestações exteriores que o impressionem e comovam. Ele ama o colorido e a pompa das festas e dos ritos por causa de um inato sentimento de fausto e magnificência, duas características fundamentais da personalidade italiana.
Música. luz, cores e sabores
Essa é a principal razão pela qual, nas festas populares italianas – não importa sejam elas religiosas, sagras esportivas, de tradição histórica, ou simplesmente reminiscências ainda vivas de costumes pré-cristãos – música, luz, cores e sabores são elementos obrigatórios. Daí a profusão de rojões, fogos de artifício, tocheiros e velas acesas, matracas, bandas e orquestras, trajes típicos, combates e enfrentamentos, badalar de sinos, balcões enfeitados, ruas recobertas com pétalas de flores, longas procissões onde não faltam andores de santos e sarcófagos carregados sob dosséis de tecidos preciosos e um sem número de adereços e alegorias que nessas festas pode ser encontrada.
Ao longo do ano, sagras, eventos religiosos, esportivos e folclóricos se sucedem em toda Itália. Cada um desses ritos compõe o vasto mosaico de cores, formas, sabores, artesanatos, cantos, danças e costumes de um passado que permanece vivo na memória do povo italiano.
Muitas festas populares, na Itália, têm também um caráter purificador, de remissão das falhas e dos pecados. Em Trento, por exemplo, bela cidade pré-alpina situada no norte do país, há uma grande festa que se encerra com um curioso rito de purificação coletiva através do sacrifício simbólico de um único indivíduo. Chama-se Palio dell’Oca (Corrida do Ganso) e consiste numa competição aquática travada sobre as águas rápidas e agitadas do rio Adige. Sobre aquela superfície improvável, duas dezenas de equipes se equilibram sobre frágeis balsas feitas de toras de madeira, e cada uma delas deve singrar em ziguezague sobre o rio, indo de uma margem a outra, enfrentando inúmeros obstáculos. Um dos mais difíceis é colocar aros de metal no pescoço de um enorme ganso de papelão pendurado sobre as águas, numa curva perigosa do rio.
A festa de Trento é encerrada com a Tonca, uma tradição autenticamente medieval. Há séculos, os trentinos infligiam aos hereges e blasfemadores o castigo da tonca, que consistia em trancar tais pecadores dentro de grandes gaiolas de madeira, e fazê-los mergulhar várias vezes, e por minutos seguidos, nas águas geladas do Adige. Se os pobres sobrevivessem, considerava-se que Deus os havia perdoado; se morressem (a maioria morria afogada), era por que o crime deles não tinha remissão. Hoje, o “pecador” escolhido é sempre algum rapaz trentino, selecionado pela robustez e pelo temperamento gaiato. Vestido com um camisolão preto, ele é metido dentro de um gaiolão feito de varas de bambu. Este, pendurado numa corda, desce do alto da Ponte de Santo Estevão para mergulhar algumas vezes nas águas do rio. O moço é, na verdade, um bode expiatório coletivo: ele representa todos os pecados e falhas morais cometidos pelos cidadãos, e seu “holocausto” visa purificar toda a comunidade.
Belo sacrifício, apesar de um tanto arriscado. Mas o bode expiatório tem uma compensação pelo esforço. No alto da ponte, já dentro da gaiola, momentos antes de ser atirado ao rio, a ele é concedido o luxo de fazer um longo discurso à multidão e de dizer tudo o que pensa e sente a respeito dela (falsa, hipócrita, mesquinha, violenta) e, mais especificamente, a respeito de alguns dos seus integrantes. O discurso, como não poderia deixar de ser, é à italiana, cheio de vitupérios e insultos. Prefeito pouco honesto, médicos incompetentes, padres libidinosos, agiotas impiedosos, esposas pouco fiéis e maridos cornudos, poucos escapam à língua mordaz e terrível daquele que, logo depois, há de mergulhar em águas frias para purgar a alma coletiva de Trento dos seus vícios e pecados.
Depois, aliviados, vão todos para as ruas – inclusive o “bode expiatório retirado das águas – comemorar com muita bebida e comida. Mais precisamente, no caso de Trento, com muito vinho e polenta.
Pilares da memória e da identidade nacional
Realizadas nas grandes metrópoles, mas sobretudo nas pequenas cidades e aldeias italianas, tais manifestações constituem não apenas fontes de recursos econômicos e culturais, mas também importantes pilares para a manutenção da memória nacional e da identidade anímica das coletividades que as produzem. Elas valorizam o lugar onde são realizadas, ajudando na recuperação da sua riqueza histórica. São úteis para a compreensão do presente com base no passado; para tornar conhecidas as próprias raízes escondidas na vida quotidiana, nos ritos e na literatura popular. Esses ritos ajudam os italianos a descobrir quem são.
Os ritos populares, por outro lado, refletem a grande diversidade histórica e cultural das cidades e regiões da Itália. Possibilitam a visão de um outro país, diferente da moderna nação unificada. Conectam-se aos numerosos antigos reinos, repúblicas e cidades-estados, cada um deles com sua própria história, costumes e tradições, línguas e dialetos.
Ao contrário do que muitos pensam, a Itália é um país relativamente recente. Existe, como nação unificada, há apenas cerca de 150 anos. Até a Unificação, o território italiano era fragmentado em reinos, repúblicas e cidades-estados, cada um deles com sua própria história, seus costumes e tradições, seus dialetos e línguas. Na segunda metade do século 19, graças à ação de políticos revolucionários como Garibaldi, esses territórios se uniram para constituir a nação italiana.
Manutenção das tradições milenares
Permaneceu, no entanto, na maioria das regiões outrora separadas, um forte desejo de manter vivas a tradição e a identidade regional de cada uma delas. Isso se manifesta hoje não apenas na manutenção dos dialetos regionais, mas também, sobretudo, nas festas populares.
Ligados a tradições religiosas, culturais e esportivas que permanecem vivas e ativas desde os tempos pré-cristãos e a mais distante Idade Média, tais ritos atraem as populações dos lugares onde acontecem, bem como numerosos visitantes provenientes de outras regiões do país e do exterior. Imigrantes que partiram para longe retornam nessas ocasiões para homenagear o santo de sua devoção ou rever amigos e parentes. Alguns desses eventos têm ressonância internacional, como o Pálio de Siena (tradicional e tresloucada corrida de cavalos onde o vencedor não é o jóquei, que cavalga em pelo, e sim… o cavalo); a Festa de San Gennaro, em Nápoles, com o célebre rito de liquefação do sangue do santo contido em duas ampolas de vidro; a Regata e o Carnaval de Veneza, que fazem parte da tradição náutica da cidade lagunar.
Outros, menos conhecidos, são curiosos e de importante significado regional, como “I Gigli” de Nola (festa de fundo religioso onde grupos de homens correm pelas ruas carregando pesadíssimas e enormes “máquinas” de madeira) e “I Carri” de Larino, cuja tradição vem dos ritos agrários pré-cristãos que existiam na península há milênios. Vários outros ritos extravagantes e bizarros, também de origem pagã, permanecem vivos na Itália. A Procissão das Serpentes em Cocullo, na província dos Abruzos, é talvez única no mundo todo: todos os anos, na primeira quinta-feira de maio, a população sai da Igreja de São Domenico, em procissão, carregando nas mãos centenas de enormes serpentes vivas.
Há também os ritos religiosos de autoflagelação dos “spinati” em Palmi, ou o dos “Vattenti”, em Guardia Sanframondi, nos quais centenas de homens golpeiam seus corpos com instrumentos perfurantes derramando muito sangue.
Alguns desses ritos implantaram-se em outros países e continentes, no bojo dos grandes fluxos de migração, como é o caso das festas italianas “brasileiras”, a Festa da Polenta no Espírito Santo, a Festa da Uva em Caxias do Sul, ou os Ritos da Madona de Achiropita, em São Paulo.
Festas italianas no Brasil
Os imigrantes italianos que vieram para o Brasil não chegaram ao nosso país apenas com a roupa do corpo e o desejo de construir uma nova vida. Trouxeram também, no coração e na mente, o antigo e rico acervo dos costumes e tradições da sua terra de origem. Desse acervo se destacam várias importantes festas populares que aqui se implantaram e que, hoje, fazem parte do calendário festivo de várias cidades.
Em São Paulo, por exemplo, existe um verdadeiro ciclo de festas italianas, composto pelas festas de Nossa Senhora Aquiropita (em agosto, no bairro do Bexiga), San Gennaro (em setembro, no bairro da Mooca), São Vito Mártir (em junho/julho no bairro do Brás), Santo Emídio (em agosto, na Vila Prudente), Nossa Senhora de Casaluce (em maio, no Brás).
Outras festas italianas de caráter não-religioso, mas sim inspiradas nas “sagras” regionais italianas, são realizadas pelas comunidades de imigrantes em várias localidades no sul do Brasil. Como exemplo, a Festa Trentina, em setembro, em Rio dos Cedros, Santa Catarina, e as várias festas gastronômicas, do vinho e da uva, além de eventos folclóricos, sobretudo nas cidades da Serra Gaúcha, no Rio Grande do Sul.
(*) Por mais de uma década, o fotógrafo ítalo-brasileiro Lamberto Scipioni registrou em fotos e vídeos alguns dos mais importantes ritos e festas que acontecem em todo o território italiano. Alguns deles foram trazidos para o Brasil pelos imigrantes, e também foram alvo da atenção de Scipioni.
GALERIA DE IMAGENS
Multidão reunida em Nola para assistir à passagem dos gigli, enormes e pesadas armações de madeira.