Dezenas de populações no mundo todo se comunicam através de assobios. Não se trata de sinalizações casuais, mas sim de linguagens reais que veiculam significados complexos e que, com toda probabilidade, se aproximam das primeiras formas de trocas verbais da história da humanidade.
Por: Equipe Oásis
Nos contrafortes do Himalaia, os cantos dos pássaros se mesclam, de tanto em tanto, com silvos e assobios de outra natureza: aqueles emitidos pelos rapazes da etnia Hmong empenhados em cortejar as moças da região.
Não imaginem, no entanto, que são parecidos com os fiu-fius produzidos pelos jovens dos nossos países quando, pelas ruas, se voltam para admirar as belas formas de uma garota. Os assobios dos jovens Hmong constituem um verdadeiro código secreto de comunicações destinadas a transmitir poesias e mensagens de amor. Se a moça está interessada, ela responderá assobiando também, dando início a um namoro à distância, sem revelar aos outros a identidade do casal.
Bem mais difusa do que se pensa
Trata-se de um caso raro, mas que está longe de ser único. No mundo todo, são cerca de 70 as populações até agora identificadas que se exprimem através de assobios, conferindo a essa forma de comunicação a complexidade de uma língua perfeitamente definida e acabada.
Julien Meyer, linguista da Universidade de Grenoble, dedicou muitos anos à tarefa de encontrá-las e estudá-las in loco. Um trabalho que revela muito sobre como o cérebro interpreta sons e palavras, e que poderia inclusive explicar como os seres humanos se comunicavam originalmente.
Uma família Hmong: a língua dos assobios ainda é bastante praticada por esse grupo étnico.
Os assobios chegam a distâncias bem mais longas do que os sons da língua falada, mesmo quando gritada. Em um ambiente aberto, os assobios podem ser ouvidos e entendidos a 8 quilômetros de distância. Esta é a razão pela qual a linguagem dos assobios com frequência é utilizada por comunidades isoladas de pastores de montanha. Ela constitui o método perfeito para transmitir informações do começo ao fim dos vales. Em La Gomera, uma das ilhas Canárias, existe uma população de “assobiadores” muito estudada que, com os assobios, elabora frases que possuem complexas regras de sintaxe. A língua se chama Silbo Gomero e é tão semelhante aos cantos dos pássaros, que os melros da ilha aprenderam a imitá-la.
Passaporte sonoro
Os assobios conseguem penetrar no meio da folhagem espessa das florestas e a sobressair frente aos ruídos do mar e das cachoeiras, e o fazem sem assustar as presas. Exemplo disso são os caçadores Inuit (esquimós) do Estreito de Behring quando vão à caça no oceano.
Como linguagem criptada (em código), foi usada inúmeras vezes em tempos de guerra. As populações berberes da cadeia de montanhas Atlas (na África do Norte) trocavam informações através de assobios durante a resistência contra os colonizadores franceses. Antigos textos chineses falam de populações que assobiavam inteiros poemas taoístas como formas particulares de meditação. No sul da China existem ainda diversas comunidades que praticam essa cultura particular de assobios. Outras formas de comunicação similares podem ser encontradas na Turquia, México, Grécia, Etiópia.
Os assobios podem ser ouvidos a grandes distâncias: eis por que, com frequência, ainda são usados, inclusive com formas muito complexas, pelas comunidades de pastores de montanha. Na foto, paisagem de La Gomera.
Como interpretá-los
Como os assobios conseguem veicular frases possuidoras de sentido complexo? Principalmente através de duas estratégias: Nas línguas tonais faladas na Ásia, nas quais uma inflexão diversa dada a uma mesma sílaba pode mudar inteiramente o sentido da mesma, os assobios seguem as mesmas melodias que se transmitem em uma frase falada. Nas línguas não tonais, os assobios imitam as mudanças de som veiculadas pelas diversas vogais. Para exprimir as consoantes, aplica-se a intensidade com que o assobio é emitido.
O cérebro colhe esses significados e reconstrói os fonemas faltantes, mais ou menos como fazemos quando procuramos compreender uma frase pronunciada em uma sala cheia, ou tentamos reconstruir uma informação sussurrada no ouvido. Segundo Meyer, os assobiadores fluentes compreendem as frases assobiadas com uma exatidão que supera os 90%.
E há mais: quem se exprime com essa linguagem, quando escuta duas sílabas assobiadas com ambos os ouvidos contemporaneamente, consegue distingui-las com igual facilidade. Isso significa que ambos os hemisférios cerebrais colaboram na tentativa de perceber o sentido daquilo que se escuta – enquanto, tradicionalmente, o processamento da linguagem é atribuído apenas ao hemisfério esquerdo.
Isso significa não apenas que o cérebro humano é excepcionalmente adaptável, mas também que em caso de dano ao hemisfério esquerdo, pode-se aprender a se comunicar da mesma forma reorganizando as tarefas e funções, inclusive com formas diversas de comunicação como a língua dos assobios.
O estudo dessas linguagens que se encontram no limite entre o falado e o cantado também justifica a conexão que existe entre a música e a linguagem. O hemisfério direito, crucial para a compreensão da linguagem dos assobios, é particularmente envolvido na elaboração do ritmo e da melodia: compreende-se agora por que, por exemplo, a educação musical parece ajudar e estimular e alfabetização infantil.
As primeiras trocas de informações eram cantadas
Por fim, a língua dos assobios parece ter raízes muito antigas. Já que a música e a linguagem requerem, ambas, capacidade de articulação e de imitação dos outros, além da compreensão da comunicação simbólica, é possível que ambas tenham nascido com um objetivo comum.
Charles Darwin falava de uma protolinguagem musical. Com base nessa sua teoria, o ser humano teria começado a cantar antes de falar, talvez com vocalizações destinadas a cortejar os parceiros. Como fazem até hoje um grande número de espécies animais, com essa prática o homem primitivo assustava e intimidava os rivais, ressaltava a sua própria pessoa no seio da comunidade e consolidava os seus laços sociais. Ao mesmo tempo, através dessas práticas ele desenvolvia um domínio cada vez maior das suas cordas vocais.
Se essa teoria for válida, a linguagem dos assobios poderá ser considerada uma forma de protolinguagem. Ouvir as interlocuções vocais dos Hmong ou as de outras comunidades de assobiadores poderá ser a experiência mais próxima possível dos modos de comunicação dos nossos antepassados mais remotos.
Vídeo produção Jungles in Paris: El Silbo de La Gomera