O oculista só vê os olhos, o cirurgião só o campo operatório, o endocrinologista só os índices hormonais. Mas o médico de família vê tudo isso e muito mais. Infelizmente esses santos médicos generalistas são cada vez mais raros. Como fazer para encontrar um?
Por Luis Pellegrini
“Vou chegar bem atrasado amanhã. Logo cedo, terei de fazer mais uma endoscopia”, disse nosso colega Roberto.
“Mais uma endoscopia?! Você fez uma há poucas semanas. Seu médico mandou repetir o exame?”, comentei surpreso e um tanto preocupado.
“Fiz duas nos últimos meses, e os resultados foram todos negativos. Não acharam nada. Meu novo médico quer fazer novamente. Acha que a causa da minha tosse seca pode ser mesmo refluxo gástrico, já que não acharam nada nos pulmões nem na garganta”, respondeu nosso amigo, com um curioso brilho misto de contentamento e aflição no olhar. O mesmo brilho que ele ostenta toda vez que comunica ter encontrado um novo médico ou que terá de fazer nova bateria de exames.
Entendi que ele precisava mesmo era de uma boa alfinetada – amigo, afinal, é para isso –, e achei que chegara a hora: “Roberto, já ouviu dizer que quem procura acaba achando? Você tanto procura doenças que vai acabar criando uma, e das sérias. Há mais de um ano seus médicos buscam causas físicas para essa tosse, fizeram dezenas de exames clínicos de todos os tipos e não encontraram nada. No corpo você é sadio como um peixe. Não acha que está na hora de procurar um neurologista ou um psiquiatra para ver se a causa desses males todos não está na sua cabeça, ou nos seus nervos?”
Ele quase me comeu vivo. Como todo bom neurótico hipocondríaco, Roberto não suporta que seus males itinerantes – porque “caminham” através de seu corpo como fossem bichos, e cada dia estão num lugar diferente – sejam atribuídos a causas psicológicas ou nervosas. Para ele, têm de ser físicos, e se não são encontrados no corpo físico, isso só pode ser culpa dos médicos, uns burros incompetentes.
Todos os amigos, no entanto, colegas, parentes e correligionários sabem há muito tempo que Roberto tem algum problema de ordem psíquica. Ele apresenta grande quantidade de sintomas evidentes. Mas, como não somos médicos, não sabemos bem do que se trata. Será transtorno de humor? Será a síndrome de bipolaridade, a popular psicose maníaco-depressiva, hoje tão em moda? Será a velha histeria, carro-chefe do elenco freudiano das psicoses?
Seja lá o que for, esse problema há muitos anos tem levado nosso pobre Roberto a uma existência de confusão e sofrimento cada vez maior. A lista de médicos que ele já consultou tem centenas de nomes. A pilha de resultados de exames clínicos acumulados deve ter metros de altura. E o saco dos parentes e amigos que o amam – porque ele é uma pessoa boníssima e que merece ser amada – está mais inchado que a jabulani da copa de futebol. Pois ninguém mais aguenta ouvir o rosário de lamentações de doenças que ele costuma desfiar sem nenhum aviso prévio.
Todos sabemos disso, todos achamos que a tosse seca nada mais é do que a enésima forma de tique nervoso que Roberto manifesta. No seu histórico de movimentos corporais incontroláveis vários outros já se evidenciaram no passado, um de cada vez, num elenco de gesticulações anômalas que vai desde o tremor incontrolável das suas pernas até a mania de cuspir continuamente, como se quisesse expulsar algo instalado em sua boca. Passando, lembro-me bem, pela fase em que continuamente tentava morder a ponta do próprio nariz, ricto que já começava a deformar seu rosto quando, felizmente, e de repente, parou.
Todos sabemos disso, nós que o conhecemos bem. Todos, menos os médicos, que continuam encaminhando o pobre para laboratórios de exames. E a pergunta que não quer calar é: por que, até hoje, nem um único médico consultado sequer sugeriu que o caso de Roberto requer uma abordagem psiquiátrica ou neurológica? Todos, sem exceção – e após uma consulta que não dura mais de dez minutos – o mandam repetir o mesmo calvário de check-ups e exames laboratoriais sem fim. Tortura a que ele mais uma vez se submete, na esperança sempre renovada de que, “desta vez, vão descobrir o que eu tenho”.
E, diante do quadro, qual é a política dos planos de saúde? A de burrice passiva total. Preferem perder milhões na prática dessa medicina feita de um frenesi de exames, em vez de discutir seriamente a questão crucial: não será essa medicina das consultas a jato, com pouca ou nenhuma interação real entre paciente e terapeuta, um tremendo – e oneroso – equívoco?
Há alguns anos, vítima de um problema no joelho direito, procurei dois ortopedistas do meu plano de saúde. Ambos, após consultas que não duraram mais de dez minutos cada uma, e de ressonâncias, tomografias e radiologias do joelho (que levaram semanas para ser realizadas) recomendaram cirurgia. Felizmente, antes de entrar na faca, decidi seguir o conselho de uma amiga e fui consultar um dos mais antigos e experientes ortopedistas de São Paulo, o doutor Guglielmo Francesco Mistrorigo.
Cheguei no consultório dele mancando e carregando a pilha de exames já feitos. Pois bem, ele nem sequer abriu os envelopes. Depois de uma boa conversa que durou uma meia hora, pediu que eu caminhasse até o fundo da sala e depois voltasse, olhando para ele. Apenas me sentei novamente, e ele disse: “Você rachou o menisco direito ao meio. Uma parte se deslocou para a direita do joelho, a outra para a esquerda. Criou-se uma pequena fissura entre as duas. Houve derramamento de líquido – por isso o joelho está inchado – e você está sentindo muita dor na parte interna da coxa e na barriga da perna.”
Surpreso, comentei: “É exatamente isso, doutor Mistrorigo. Mas como o senhor fez para saber? Sequer abriu os envelopes dos exames que eu lhe trouxe!”
E ele: “Ora, meu filho. Minha formatura foi em 1957, tenho 50 anos de profissão. Essas tecnologias, ressonância magnética, tomografia, não têm mais de 20 anos. Como você acha que nós diagnosticávamos antes disso? Basta ver como você caminha e já sei tudo que está acontecendo.”
“E quanto à cirurgia que seu colegas recomendaram? O senhor confirma?”
“Meus colegas, que você visitou, certamente não devem ter muito mais de 30 anos de idade. Vivem com o bisturi na mão. Fazem parte de uma geração que adora cirurgia. Mas veja bem, Luis: operar um menisco quando se tem 20 anos pode resolver o problema. O Ronaldo operou e continua jogando futebol até hoje. Mas, com mais de 50, isso é uma temeridade. Todas, ou pelo menos quase todas as pessoas da terceira idade, apresentam rupturas na estrutura dos meniscos. É normal. Os pedaços dos meniscos aos poucos se ajeitam lá dentro e o idoso volta a caminhar normalmente, ou quase, embora tenha de desistir do futebol… Mais tarde, lá pelos 70, 80, o jeito é fazer amizade com a bengala canadense.”
Santo doutor Mistrorigo. Evitou-me uma cirurgia inútil e arriscada, e hoje caminho normalmente. Enquanto espero os anos em que, segundo a profecia dele, terei de casar com a bengala canadense.
Mas esse médico venerando pertence a uma outra geração. Foi formado nos tempos em que os médicos aprendiam e podiam desenvolver uma relação humana verdadeira com seus pacientes. Na sua alma, doutor Mistrorigo é, como se costumava dizer, um “médico de família”. Daqueles que sabem tudo a respeito do paciente, e não apenas do ponto de vista clínico. Um médico de verdade. Diante dele, não tive a triste sensação de estar falando a um robô ou um computador de carne e osso, vestido de branco, especializado em diagnosticar e a receitar exclusivamente a partir dos resultados de exames laboratoriais.
Um verdadeiro médico de família. Onde e como encontrar esse tesouro? Como acertar na escolha, quais são suas características?
Andei me informando a respeito, e o primeiro a quem fiz as perguntas foi o próprio doutor Mistrorigo. “Para achar um médico assim, melhor ir procurar fora de São Paulo. Vá para Itu, Tietê, Jundiaí, qualquer cidade do interior”, aconselhou meu octogenário ortopedista.
Doutor Mistrorigo talvez tenha sido um tanto radical. Talvez até mesmo em megalópoles como São Paulo ainda existam médicos de família. Se você for novo no pedaço, procure se informar com amigos e conhecidos, ou com os comerciantes do bairro, e confronte as informações deles com as do farmacêutico e as dos enfermeiros das clínicas e hospitais. Os mais sortudos são aqueles que ainda podem contar com os velhos médicos de sua própria família: eles costumam ser verdadeiros bancos de dados ambulantes.
Como saber se seu médico é um bom médico? Com a proliferação de fontes de informação como as revistas e a internet, hoje todos pensam que sabem como se curar e se sentem verdadeiros médicos, saltando por cima dos cansativos anos de estudos e de prática clínica. Mas essas fontes podem ser perigosas, podem recomendar remédios inúteis e até mesmo danosos. O bom médico deve saber dizer não a fármacos não necessários: ele viu demasiados rins bloqueados pelo mau uso de medicamentos, inúmeras moléstias induzidas pelo excesso de terapias químicas, e tenderá a dizer “não tome nada, espere que isso vai passar sozinho”. E terá razão, assim fazendo: a maioria das doenças desaparece no mesmo tempo, mesmo que não se faça nada.
O bom médico prescreve poucos exames e não prescreve nenhum exame se não existir a suspeita de um diagnóstico a ser esclarecido. Quem tem o hábito de prescrever muitos exames demonstra caminhar no escuro (à exceção das poucas doenças raríssimas).
Se o paciente insiste em fazer mais uma vez os controles da glicemia ou do colesterol, o bom médico o olhará bem nos olhos e perguntará, entre sério e sorridente, se ele mudou seu estilo de vida, se caminha pelo menos meia hora todos os dias, se come menos doces e carboidratos, se diminuiu o consumo de embutidos e de carnes vermelhas. Pois os exames não têm nenhuma capacidade terapêutica, e não é repetindo a análise que se encontrará a solução do problema. Além disso, todo médico sabe que uma pequena porcentagem dos exames dá resultados errados e teme as consequências dessa margem de erro, mesmo quando ela é pequena.
O bom médico precisa conhecer os seus pacientes. Um médico que cuida de uma família durante várias gerações conhece os pontos fracos dos seus membros melhor que qualquer teste genético. E percebe claramente inclusive aquelas coisas que os pacientes não gostam de confessar: os quilos a mais, as carnes um tanto flácidas, a cor pálida, os dentes estragados, o cheiro das roupas ou do hálito, as mãos calosas ou demasiado finas, a postura das costas e da cabeça. E sabe que se não tomar alguma providência em breve terá um caso mais grave para cuidar. Não teme passar por chato, com suas contínuas exortações para que o paciente pare de fumar, para que coma mais verdura, para que ande mais a pé, para que esteja mais ao ar livre, para que beba menos álcool. O médico que fica apenas “na dele” pode parecer cômodo, mas é certamente um mau médico.
O bom médico de família está em seu consultório nos horários estipulados, mas também admite ser localizado fora desse horário, fornecendo ao paciente um número de telefone para uma eventual necessidade urgente. Mas é capaz de passar um pito no paciente quando este o chama sem necessidade.
Sobretudo, o bom médico de família não vê o paciente simplesmente como alguém que carrega um cartão de plano de saúde. Ele o vê como um amigo, um filho ou irmão, alguém que depende dele como uma criança precisa dos pais.
Originally posted 2010-06-29 17:19:14.
Tive a felicidade de ter o Dr. Guglielmo Mistrorigo como médico quando criança, no Instituto de Ortopedia do Hospital das Clinicas, em São Paulo. Me tratei com ele dos 2 aos 6 anos e ,mesmo bem pequena ,já percebia que ele era diferente dos outros médicos. Enquanto os outros “doutores” passavam pelos corredores lotados de pacientes sem olhar para os lados, ele passava distribuindo sorrisos, chamando alguma meninininha de princesa, outra de boneca, e assim ia encantando suass pequenas pacientes. Nos tratava com a mesma atenção e respeito que ele dispensa aos seus pacientes particulares. Sou fã desse excelente médico e extraordinário ser humano.
Vou num clínico geral, considerado muito bom, mas fico no mínimo 1 hora e meia sentada na sala de espera (isso tendo marcado hora ) para depois ser atendida em 10 minutos. E ele nem me olha direito – fala, olhando para baixo (mais em função da sua própria dificuldade de comunicação do que de pressa ).
É difícil falar com ele fora do horário da consulta, porque está sempre ocupado, atendendo. Retorna as ligações dias depois ou nos finais de semana, à noite. Quando tenho pressa em buscar uma informação, tenho que insistir muito; muitas vezes acabo buscando as informações através do atendimento telefônico da Unimed.
Vi uma vez uma pessoa passando mal na sala de espera, pedindo para ser atendida mais rapidadente, ao que a secretária respondeu que tinha sido instruída a dizer que, se alguém passasse mal, deveria buscar um hospital.
Sou uma pessoa sozinha, e me assusta pensar que, se precisar, não tenho um médico a quem ligar e pedir socorro.
Estou há anos buscando um médico de família – alguém em que possa confiar e ter uma relação não apenas profissional, mas também humana. Que me veja não apenas como uma máquina em funcionamento, mas como uma pessoa, em múltiplos aspectos. Que tenha um olhar aberto a essas relações entre corpo, mente e espírito (será pedir demais?) Mas, principalmente, um médico com o qual eu possa contar e que possa me acompanhar ao longo da minha vida.
Este artigo é espetacular! Total identificação com uma pessoa da minha família e com tudo que penso sobre a medicina atual.
Uma amiga entregou-me esta matéria, retirada de uma revista e achei espetacular! Emprestei para uma outra amiga, que adorou também, mas a empregada jogou fora e ela ficou muito constrangida. Agora fiquei feliz em recuperar a matéria aqui no site.
Parabéns!
Querida Lourdes, como você escreve bem! Será que isso também é obra do doutor Zambon? Brincadeirinha. Sei que não é. Obrigado pelo comentário.
Luis, eu tenho meio século de existência e, provavelmente por isso, eu tive um médico de família. Nasci e morei até a juventude em São Caetano e desde que me conheço por gente éramos atendidos pelo dr. Zambon (acho que ele não tem nada a ver com um famoso laboratório homônimo). Fui uma criança normal, comum, que teve catapora, sarampo, tosse comprida e caxumba. Bebi Biotônico Fontoura, Leite de Magnésia Bisurada, Emulsão de Scott…e o dr. Zambon ia lá em casa com sua maleta preta, aplicava injeção, conversava, ficava horas. Me intrigava pq nunca vi meu pai pagá-lo (depois descobri que ele ia até o consultório que ficava no centro da cidade acertar a conta. Dr. Zambon chegava de táxi. O Táxi ficava lá na porta esperando. Eu achava muito chique. Dr. Zambon aconselhou minha mãe, a não guardar mágoas e ressentimentos há mais de trinta anos, quando ninguém falava em doenças psicossomáticas. Ele recuperou minha mãe de uma depressão pós-viuvez com vitaminas naturais, atividade física (mandou ela viajar com as amigas) e boa alimentação (falou pra ela deixar de ser preguiçosa e comer, nem quem fosse numa pensão, já que ela não gostava muito de cozinhar, imagina, isso há quase 30 anos!). Ela seguiu seus conselhos. Logo depois ele morreu. Nunca mais vi um médico entrar na casa dela (eu já estava casada). Quando precisou, a gente a levava nos hospitais e mesmo pagando caros planos de saúde, eu a vi, bem debilitada, ficar horas sentadinha num banco duro e gelado aguardando ser atendida por um recém-formado que a enchia de exames desconfortáveis e constrangedores. Um dia ela falou: Chega, não faço mais exame nenhum. E não fez. Eu jé morava em Boituva, nessa época e lá eu tive um médico de família, o dr. Paulo. Ela adotou o dr. Paulo mais do que depressa. Morreu lá, em Boituva, porque confiava nele.Tinha ido pra uma consulta de rotina. Ficou. Bjo Lulu!