Há pouco li, com imensa alegria, o texto abaixo, que ainda não conhecia, assinado por Leonardo Boff. Nele, o ilustre teólogo resgata a umbanda como importante sistema espiritual de matriz brasileira.
Nada mais acertado. A umbanda é uma das únicas – se não a única – religião autenticamente brasileira. Todas, ou quase todas as demais religiões que atuam em nosso país, são importadas. Nasceram em outros sistemas sócio-culturais e, portanto, são imigrantes. O cristianismo que aqui chegou, tanto na forma católica quanto a protestante, é europeu; o budismo e as religiões japonesas e chinesas são asiáticos; as seitas evangélicas contemporâneas vieram dos Estados Unidos, são norte-americanas; o espiritismo é francês; o próprio candomblé, uma das principais raízes formativas da umbanda, é africano.
Mas a umbanda é brasileira. Nasceu aqui, a partir da cultura de sincretismo que caracteriza o Brasil. É, sem dúvida, além de vigoroso sistema religioso e espiritual nascente, o melhor espelho daquilo que poderíamos chamar de “alma brasileira”. Uma alma nacional multicolorida, já que composta de todos os matizes do negro, do branco e do amarelo. Só não sei se podemos afirmar, com certeza, como o faz Leonardo Boff em seu artigo, que a umbanda nasceu em Niterói, em 1908. Bem antes disso, e em vários outros lugares do Brasil, registros atestam que “entidades” espirituais que se apresentavam em centros espíritas kardecistas e em terreiros de candomblé, o faziam como sendo pretos-velhos, caboclos, etc. Mas o senão dessa dúvida histórica é irrelevante diante do corajoso pronunciamento de Leonardo Boff que transcrevo abaixo. Corajoso, sim, mas não surpreendente, em termos de coerência intelectual e espiritual, para quem tem em sua biografia ações da grandeza da Teologia da Libertação.
Que sorte um país como o nosso que pode contar com a presença de religiosos católicos do porte de Leonardo Boff, de Dom Pelé, do monge e intelectual beneditino Marcelo Barros!
O encanto dos Orixás
Por Leonardo Boff
Quando atinge grau elevado de complexidade, toda cultura encontra sua expressão artística, literária e espiritual. Mas ao criar uma religião a partir de uma experiência profunda do Mistério do mundo, ela alcança sua maturidade e aponta para valores universais. É o que representa a Umbanda, religião, nascida em Niterói, no Rio de Janeiro, em 1908, bebendo das matrizes da mais genuína brasilidade, feita de europeus, de africanos e de indígenas. Num contexto de desamparo social, com milhares de pessoas desenraizadas, vindas da selva e dos grotões do Brasil profundo, desempregadas, doentes pela insalubridade notória do Rio nos inícios do século 20, irrompeu uma fortíssima experiência espiritual.
O interiorano Zélio Moraes atesta a comunicação da Divindade sob a figura do Caboclo das Sete Encruzilhadas da tradição indígena e do Preto Velho da dos escravos. Essa revelação tem como destinatários primordiais os humildes e destituídos de todo apoio material e espiritual. Ela quer reforçar neles a percepção da profunda igualdade entre todos, homens e mulheres, se propõe potenciar a caridade e o amor fraterno, mitigar as injustiças, consolar os aflitos e reintegrar o ser humano na natureza sob a égide do Evangelho e da figura sagrada do Divino Mestre Jesus.
O nome Umbanda é carregado de significação. É composto de OM (o som originário do universo nas tradições orientais) e de BANDHA (movimento incessante da força divina). Sincretiza de forma criativa elementos das várias tradições religiosas de nosso pais criando um sistema coerente. Privilegia as tradições do Candomblé da Bahia por serem as mais populares e próximas aos seres humanos em suas necessidades. Mas não as considera como entidades, apenas como forças ou espíritos puros que através dos Guias espirituais se acercam das pessoas para ajudá-las. Os Orixás, a Mata Virgem, o Rompe Mato, o Sete Flechas, a Cachoeira, a Jurema e os Caboclos representam facetas arquetípicas da Divindade. Elas não multiplicam Deus num falso panteismo mas concretizam, sob os mais diversos nomes, o único e mesmo Deus. Este se sacramentaliza nos elementos da natureza como nas montanhas, nas cachoeiras, nas matas, no mar, no fogo e nas tempestades. Ao confrontar-se com estas realidades, o fiel entra em comunhão com Deus.
A Umbanda é uma religião profundamente ecológica. Devolve ao ser humano o sentido da reverência face às energias cósmicas. Renuncia aos sacrifícios de animais para restringir-se somente às flores e à luz, realidades sutis e espirituais.
Há um diplomata brasileiro, Flávio Perri, que serviu em embaixadas importantes como Paris, Roma, Genebra e Nova York que se deixou encantar pela religião da Umbanda. Com recursos das ciências comparadas das religiões e dos vários métodos hermenêuticos elaborou perspicazes reflexões que levam exatamente este título O Encanto dos Orixás, desvendando-nos a riqueza espiritual da Umbanda. Permeia seu trabalho com poemas próprios de fina percepção espiritual. Ele se inscreve no gênero dos poetas-pensadores e místicos como Alvaro Campos (Fernando Pessoa), Murilo Mendes, T. S. Elliot e o sufi Rumi. Mesmo sob o encanto, seu estilo é contido, sem qualquer exaltação, pois é esse rigor que a natureza do espiritual exige.
Além disso, ajuda a desmontar preconceitos que cercam a Umbanda, por causa de suas origens nos pobres da cultura popular, espontaneamente sincréticos. Que eles tenham produzido significativa espiritualidade e criado uma religião cujos meios de expressão são puros e singelos revela quão profunda e rica é a cultura desses humilhados e ofendidos, nossos irmãos e irmãs. Como se dizia nos primórdios do Cristianismo que, em sua origem também era uma religião de escravos e de marginalizados, “os pobres são nossos mestres, os humildes, nossos doutores”.
Talvez algum leitor/a estranhe que um teólogo como eu diga tudo isso que escrevi. Apenas respondo: um teólogo que não consegue ver Deus para além dos limites de sua religião ou igreja não é um bom teólogo. É antes um erudito de doutrinas. Perde a ocasião de se encontrar com Deus que se comunica por outros caminhos e que fala por diferentes mensageiros, seus verdadeiros anjos. Deus desborda de nossas cabeças e dogmas.
Quem é Leonardo Boff
Leonardo Boff nasceu em Concórdia, Santa Catarina, em 14 de dezembro de 1938.
É neto de imigrantes italianos da região do Veneto, vindos para o Rio Grande do Sul no final do século 19.
Cursou filosofia em Curitiba, Paraná, e teologia em Petrópolis, Rio de Janeiro. Doutorou-se em teologia e filosofia na Universidade de Munique, Alemanha, em 1970.
Ingressou na Ordem dos Frades Menores, franciscanos, em 1959.
Durante 22 anos, foi professor de teologia sistemática e ecumênica em Petrópolis, no Instituto Teológico Franciscano.
Professor de teologia e espiritualidade em vários centro de estudo e universidades do Brasil e do exterior, além de professor-visitante nas Universidades de Lisboa (Portugal), Salamanca (Espanha), Harvard (EUA), Basel (Suíça) e Heidelberg (Alemanha).
Em 1984, em razão de suas teses ligadas á Teologia da Libertação, apresentadas no livro Igreja: Carisma e Poder, foi submetido a um processo pela Sagrada Congregação para a Defesa da Fé, ex-Santo Ofício, no Vaticano.
Em 1985, foi condenado a 1 ano de “silêncio obsequioso” e deposto de todas as suas funções editoriais e de magistério no campo religioso.
Dada a pressão mundial sobre o Vaticano, a pena foi suspensa em 1986.
Em 1992, sendo de novo ameaçado com uma segunda punição pelas autoridades de Roma, renunciou às suas atividades de padre e se autopromoveu ao estado leigo. Como seus amigos e alunos costumam dizer, “mudou de trincheira para continuar a mesma luta”.
Leonardo Boff é autor de Meditação da Luz. O caminho da simplicidade. Vozes 2009.
Site oficial: http://www.leonardoboff.com
Originally posted 2010-06-18 17:13:53.
Falo da importância da Umbanda não apenas pelo caráter religioso… por seu grande respeito a natureza… comento aqui sobre cidadania, em função das entidades que se conectam para falar aqui com nós seres humanos… lá (pelo menos nos ambientes que visitei) os mais respeitados, além dos Orixás, estando na forma e função espiritual, são as crianças e os velhos. Achei aquilo incrível! Naqueles momentos eu pensava – “ah, gostaria que todos aqui respeitassem as crianças e os velhos de verdade, encarnados, da mesma forma.” E outra coisa que me deixou perplexa na época (desde a época que tive contato pela primeira vez, até hoje): a plasticidade, flexibilidade de acolher outros planos de conhecimento herméticos ou de outros ensinamentos de outras religiões e incorporar no ritual deles. Eles possuem uma “inteligência” curiosa, interessantíssimo. Obrigada, Luis!
Ilustre citação de um grande filósofo ecumênico e naturalista
que expressa o verbo, cuidando da palavra no trato do culto,
do mito e do rito com a essência da verdade e sempre celebre
no respeito humano . Adorei o mérito a esse ser humano de
fundamental importância no nível da compassividade nas
diretrizes do social e em razões do cuidar universal …
Tem um modesto comentário e o vídeo postado no blog. Abraço
Prezado Luiz Pellegrini,
Recebi, com imenso prazer, o link desta reportagem e não poderia deixar de dar a minha opinião de um simples cidadão que ama a Umbanda e os seus ensinamentos.
As palavras de Leonardo Boff são a pura verdade em relação a esta doutrina magnífica que mostra apenas a verdade e o verdadeiro caminho. Ligada por laços firmes e inquebrantáveis da fraternidade, ajuda e do amor, a Umbanda não quer ter razão, apenas mostra um caminho, não fácil de ser trilhado, se nos amarramos às raízes da materialidade, mas ensina que a melhor coisa é conseguir não perdoar. Sim, não perdoar ao atingir um patamar que nos permita não melindrar ou ofender, não sendo assim, necessário o perdão. Já nos mostrava isso o mestre Jesus.
Concordo com você, Marcelo: este texto do Leonardo Boff sobre a umbanda é mesmo primoroso. Mas diga lá: por que você diz que é suspeito pra falar?
Embora seja suspeito para falar, um texto como este há muito não se via ou lia. Muito bom!