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Vitória saqueada. Um apocalipse na capital do Espírito Santo

 

As imagens veiculadas pelas televisões ainda estão bem gravadas nas minhas retinas: centenas, talvez milhares entram nas lojas arrombadas e saem delas carregados de caixas e pacotes. Sapatos, batatas, aparelhos eletrônicos, roupas, tudo ao alcance das mãos é levado no contexto de um saque coletivo que não prenuncia nada de bom.

Por: Luis Pellegrini

Foi o que aconteceu, há dois dias, na capital do Espírito Santo, numa Vitória entregue à própria sorte, quando seus policiais em greve se enclausuraram nos quartéis. Foi preciso chamar tropas do exército para por alguma ordem na anarquia geral. E, por aquilo que dizem os jornais na manhã de hoje, as coisas por lá ainda não entraram nos eixos.

Ladrões, traficantes, assaltantes contumazes? Não. Os saques foram cometidos por pessoas do povo, por capixabas do dia-a-dia, por donas de casa e pais de família. Apareceu nas telas um camarada magrelo todo recurvado sob o peso de três caixas de TVs digitais, das grandes. Mas uma só não bastava?

Uma noite de horror. Quando elas acontecem, devem pelo menos servir de pretexto para alguma reflexão. De onde vem esse ímpeto delinquente que transforma uma jovem mãe recém parida em ladra voraz? Terá sido um momento de loucura lunar, como aquela que transforma homens comuns em lobisomens nas noites de lua cheia? Ou isso provém de algum canto recôndito, escondido no fundo da psique individual e coletiva, sempre à espreita, à espera da primeira oportunidade para se manifestar, para assumir o controle e direcionar uma sanha de vandalismo e delinquência?

Um fenômeno psíquico e cultural

No caso do Brasil e de boa parte dos brasileiros, creio eu, é fenômeno psíquico e cultural arraigado desde as origens da nação. Narro alguns exemplos, dos muitos que pude testemunhar ao longo da minha já longa experiência de vida.

Há poucos anos, uma prima distante, que não via há tempos, mostra-se toda alegre e contente. O filho mais velho, que até os trinta e poucos vagabundeou por aí na condição de eterno adolescente, finalmente parece ter encontrado um rumo profissional. “Ele passou num concurso público. Vai começar a trabalhar no mês que vem”, diz ela com um sorriso de orelha a orelha. E que concurso foi esse? “Para fiscal da Receita Federal, Luis. Vai ficar rico!”  “Rico? Mas o salário de fiscal é assim tão alto?”, pergunto. E ela: “Bem, é um salário normal. Mas você sabe, né? Os negócios, os esquemas…”

Os negócios, os esquemas, as maracutaias… E, não, minha prima distante não é uma bandida. Foi professora primária a vida toda. Ralou duro para criar os filhos praticamente sozinha, já que o marido preferiu ser degustador de cachaças, em vez de ser fiscal do imposto de renda… Minha prima distante é uma mulher honesta. No entanto, lhe parece natural que o filho enriqueça rápido no desempenho das suas funções de fiscal. Na sua cabeça é normal que fiscais, autoridades, políticos, tirem proveito dos seus cargos e funções, já que estão mexendo com dinheiro público, e o bem público, como pertence a todos, não tem dono…

Você conhece alguém que pense como a minha prima distante?

E tem aquela vez que fui assistente de direção do filme “Erasmus Montanus”, uma produção dinamarquesa rodada ao redor de 1974 no sul da Bahia. A história se passava nos primórdios do Brasil colonial, e o protagonista, interpretado por Fausto Wolf, mix de jornalista e ator, era um poeta da Dinamarca que, não lembro por quais caprichos do destino, foi parar naquelas terras pataxós para morar com os índios. Havia uma cena em que um bando de indiazinhas nuas adolescentes tomavam banho juntas numa lagoa. E um outro índio jovem as espreita, apaixonado por uma delas, a mais bonita e brincalhona. Uma cena totalmente inocente, sem nenhuma sacanagem. Mas… onde arranjar três dezenas de garotas da região dispostas a se deixar filmar nuas, com seus corpos adornados por desenhos da arte corporal indígena? Essa era a minha tarefa como assistente de direção: formar o elenco.

Com meninas de família moradoras das pequenas cidades da região? Nem pensar. Acabei descobrindo a única saída possível: bater na porta de um dos “bregas”, os prostíbulos da região, e tratar diretamente com as cafetinas. Alguém me indicou o melhor deles, e lá fui eu negociar com Marlene, a dona do pedaço. Ela chefiava uma equipe de cerca trinta meninas, todas elas entre 12 e 17 anos. Depois disso, a garota estava velha demais para o trabalho, e tinha de sair ao mundo para cantar em outras freguezias.

Fechei negócio. Poucos dias depois, toda a equipe de filmagem estava à beira de uma lagoa em cujas águas todas as integrantes do  bordel de meninas se banhavam nuas, visivelmente encantadas com aquele dia de Esther Williams milagrosamente acontecido em suas vidas.

Na hora do lanche, conversei um pouco com a garota escolhida para o papel de namoradinha do índio. Ela tinha quinze anos, e parecia um anjo ainda mais jovem que isso. “Faz tempo que você está nessa vida?”, perguntei. “Três anos. Sou da região de Itabuna. Quando tinha doze meu pai me vendeu para um homem que, depois de transar comigo, me vendeu para a Marlene. E desde então não parei de trabalhar”, respondeu ela na mais completa naturalidade. “E o que você vai fazer quando não puder mais fazer isso?” “Sei não. Mas por enquanto minha vida está ótima, pois há quase um ano sou mulher de um homem só. Ele comprou minha exclusividade, e só me procura uma ou duas vezes por mês. É o prefeito”.

Era o prefeito. Duas semanas antes, eu e parte da equipe tínhamos almoçado na casa dele, em companhia da família. Tinha duas filhas mais ou menos na idade da jovem prostituta…

Praia de Iracema, cantada em prosa e verso

E, para completar, já que estamos falando em membros de uma juventude prostituída, testemunhei uma outra história dessas  ocorrida no calçadão da Praia de Iracema, em Fortaleza. Estava diante de um quiosque de pequenos artesanatos cearenses, negociando com a dona, uma senhora de cerca 40 anos, quando um bafafá começou a acontecer bem ao nosso lado. Também lá tratava-se de um jovem prostituta, menor de idade, discutindo aos berros com um cliente, um turista italiano. Tinham combinado o valor de um programa, foram para um hotel das imediações e, serviços prestados, de volta ao calçadão, a garota decidiu cobrar o dobro que fora estipulado. O italiano se negou e vociferava ele também. Chegou a polícia e levaram o homem.

Foi então, assim que os policiais se afastaram, que a dona do quiosque saiu de trás do balcão de dedo em riste, furiosa, apontando para a cara da menina, e bradou uma acusação que até hoje reverbera em meus ouvidos: “Você é uma péssima profissional! Você é uma bandida e mau caráter. Combinou um preço e depois cobrou outro. Isso não se faz. Você está arruinando, está desmoralizando o mercado para você mesma e as suas colegas!” Vi que as pessoas ao redor assentiam com as cabeças: a garota merecia mesmo aquela represália.

Logo depois, de volta ao seu balcão de artesanatos, perguntei à dona do quiosque: “Mas a senhora acha normal essa menina, que deve ter uns quinze ou 16 anos, estar se prostituindo no meio da rua?” A mulher me desarmou com um olhar totalmente cheio de lógica pragmática, e considerou: “Conheço essa garota. É puta velha. Está há anos na rua, é malandra. Você não sabe, mas a maioria dessas meninas são arrimo de família, sustentam os pais e os irmãos menores com o seu trabalho. É isso ou a fome e a miséria. E mercado é mercado. Imagine se eu tratar um preço com você por esses colares que lhe interessam, e na hora de cobrar dobro o preço. Como você iria reagir?”

Calei a boca. Como contestar um argumento desses? Era cultural. Vinha, como disse no começo deste artigo, de uma cultura antiga quanto a própria nação brasileira. Para aquela típica representante de uma certa casta nacional, o importante não era o fato de que centenas de milhares de garotas fossem obrigadas a se prostituir desde os 12 anos de idade. O importante era respeitar o contrato acordado…

Antes de pagar – exatamente o que fora negociado – pelos três ou quatro colares de sementes que tinha comprado para dar de presente, ainda perguntei: “E o turista italiano. o que vai acontecer com ele?” “Nada”, respondeu a mulher. “Deve ter andado uns cem metros com os policiais. Deu uma grana para eles e foi embora. Amanhã estará por aqui procurando uma nova garota”.

Poderia vasculhar no celeiro da memória e encontrar muitos outros episódios da mesma natureza que tive oportunidade de testemunhar por esse nosso imenso, belíssimo, glorioso e horrível Brasil. Mas por hoje já basta. A intenção é só a de servir a meus amigos leitores algum material para reflexão. Está mais que na hora de mudarmos tudo isso, vocês não acham?