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Eu não sou um vírus. O ódio nos tempos do corona e outros agentes da peste

 

O vírus não discrimina, ataca qualquer um. Mas nós, humanos, discriminamos: sobretudo na Europa, mas também em outras partes do mundo, a CoViD-19 desencadeou uma onda de ódio contra os presumidos “espalhadores”, um fato que, infelizmente, se repete com frequência ao longo da história.

Por: Luis Pellegrini

A redução (momentânea) da poluição atmosférica e as mãos mais limpas do que de costume infelizmente não são os únicos efeitos colaterais do novo corona vírus. Existem outros efeitos, decididamente mais desagradáveis: o racismo, que às vezes desemboca no ódio ao próximo. Porque, se é verdade que, como aconteceu em diversos países europeus, quando as pessoas não se encontram numa situação de emergência sanitária adoram comer comida chinesa, quando tiveram de combater um vírus que chegou da China se tornaram intolerantes e violentas, e não apenas verbalmente contra inocentes cidadãos de origem chinesa. Já em outros países, os italianos, por exemplo, foram pagos com a mesma moeda, etiquetados como “espalhadores” vindos do Velho Continente.

No final de janeiro, Lou Chengwang, um jovem chinês, lançou um apelo contra o racismo provocado pela epidemia do novo corona vírus. O vídeo se tornou viral em todo o mundo, com a hashtag #imnotavirus.

Infelizmente, o ódio e o racismo desencadeados pelo temor do contágio (bem como de uma notável dose de pura ignorância) têm raízes profundas e não constituem, com certeza, uma prerrogativa exclusiva dos tempos presentes e das mídias sociais. No decurso da história foram numerosos os casos de xenofobia conectados ao aparecimento de epidemias, da Peste Negra à sífilis, do cólera ao tifo.

Em Colônia, na Alemanha, no século 14, judeus foram queimados vivos acusados de serem os “espalhadores” da peste bubônica.

A peste bubônica e os judeus 

A peste bubônica, até hoje a rainha das epidemias, conhecida também como “peste negra”, explodiu na Europa diversas vezes. Na metade do século 14 provocou a morte de milhões de pessoas. Conforme o número de vítimas aumentava, os cristãos começaram a se perguntar sobre as origens daquela tremenda epidemia. Ao perceber que algumas comunidades judaicas tinham, inicialmente, sido salvas do contágio, a primeira coisa que fizeram foi atribuir a elas a culpa. Alguns afirmavam que os judeus tinham poluído os poços de água, outros diziam que queriam exterminar os cristãos envenenando o azeite e o queijo. E, dessa forma, os judeus foram golpeados não apenas pela peste, mas também pelo ódio e pelas represálias dos seus próprios concidadãos não judeus.

A sífilis de muitas nacionalidades 

“As novas doenças fazem emergir as fobias mais profundas de uma cultura”, afirma William Eamon, especialista em história da ciência. Nada mais verdadeiro do que essa afirmação, e a sífilis constitui uma prova. Quando essa doença começou a se difundir, a partir do século 15, cada país europeu lançou a culpa sobre um outro país. Assim sendo, a sífilis se tornou o “mal napolitano” fora de Nápoles, “mal francês” fora da França, “mal polonês” na Alemanha e “mal alemão” na Polônia. Três séculos depois, passou a ser conhecida no Japão como “mal português” e na Pérsia como “mal turco”. Muito tempo depois se compreendeu finalmente que, contrariamente àquilo que se acreditava, a sífilis não foi importada por Cristóvão Colombo daquilo que se considerava ser “a China”, mas que ela já estava perfeitamente presente na Europa desde os tempos dos antigos gregos.

Além dos danos, o engano

Em alguns casos, o pânico e o consequente ódio dirigido aos presumidos “espalhadores” se revelaram muito contraproducentes para a luta contra a doença, como aconteceu com uma epidemia de cólera nos Estados Unidos. A doença foi chamada de “mal irlandês”, porque coincidiu com a chegada de grandes fluxos de imigrantes provenientes da Irlanda. Na tentativa de conter o contágio, os médicos aconselhavam a pessoas a não beber uísque (bebida de origem irlandesa), mas água. Nada podia estar mais errado: a bactéria do cólera proliferava exatamente nas águas contaminadas dos poços.

Manchete do jornal Luta Democrática na época do surgimento da epidemia mundial de Aids.

Aids, a maior vítima do ódio

Não podemos deixar de falar da campanha de ódio e preconceito de que foram vítimas, sobretudo nas décadas finais do século 20 (mas também até os dias de hoje), as pessoas contaminadas pelo vírus HIV. Num verdadeiro festival de ignorância, pessoas homossexuais e consumidores de drogas injetáveis passaram a ser hostilizados por um número enorme de outras pessoas pessoas como sendo responsáveis pela disseminação do vírus. A epidemia, que rapidamente se espalhou pelo mundo todo, inclusive passou a ser chamada de “peste gay”. A descoberta, afinal, de que o vírus se originou na África, entre populações de macacos, e deles foi transmitida ao ser humano, deixou claro o quanto o preconceito ignorante está arraigado até os dias de hoje nas mentes e nos corações da maioria.

Apesar dos inegáveis progressos alcançados pela ciência e pela tecnologia, essa tendência a considerar com desconfiança e temor tudo aquilo que é diferente, e a culpar o diferente pelas nossas próprias mazelas, não mudou com o tempo. O terror dos tempos medievais ainda está vivo nas entranhas de muitos.