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Os novos rumos da fé. O sentimento que não quer morrer

Impulso primário de todas as pessoas, a fé nos leva a procurar explicações para o nosso papel no mundo. Ela está na origem das religiões, da crescente confiança na ciência, e ajuda a humanidade a superar as mais severas adversidades

 

“Andar com fé eu vou / Que a fé não costuma faiá”, diz a canção de Gilberto Gil. Exposto dessa forma simples está um dos impulsos básicos da humanidade, que ajuda a encontrar um sentido ao longo da vida, dos momentos mais simples aos mais complicados. Nos últimos meses, a crise econômica, política e moral do Brasil, a queda do avião da delegação da Chapecoense na Colômbia, as demonstrações de intolerância e racismo, a ameaça ambiental, tudo isso torna a fé um artigo de primeira necessidade.

A maioria de nós associa fé à religião, mas essa ligação não é precisa. No livro Estágios da Fé, de 1981, James W. Fowler III, professor de teologia e desenvolvimento humano na Universidade Emory (EUA), afirma que a fé surge desde o nascimento, como forma de criar um senso de ordem em meio ao caos do mundo. “A fé (…) capta as condições supremas da nossa existência, unindo-as em uma imagem compreensível à luz da qual moldamos nossas respostas e iniciativas, nossas ações”, explica.

 

Gregory Popcak, professor adjunto de sociologia e teologia da Universidade Franciscana de Steubenville (EUA), detalha o tema: “Tendemos a usar palavras como ‘fé’, ‘espiritualidade’, crença’ e ‘religião’ alternadamente e, em geral, não há nada de errado nisso. Mas para quem estuda a psicologia da religião, essas palavras têm significados diferentes.” De acordo com Popcak, a fé antecede as demais. Ela é “o impulso inato de procurar significado, propósito e importância”, que leva cada um de nós a pensar que “existe algo mais que somente eu” e nos impele a descobrir o que seria isso.

“Todas as pessoas, sejam crentes ou não, procuram o significado, o propósito e a importância que existem na vida, nos relacionamentos e nas coisas que ocorrem para elas. Reconhecemos esse esforço básico como ‘fé’, e ele é uma parte universal do ser humano. Mesmo os ateus possuem esse tipo de fé.” Esse impulso nos faz persistir diante das dificuldades, como dizia o cardiologista e ex-ministro da Saúde Adib Jatene. “O oposto do medo não é a coragem, é a fé”, repetia ele. “As pessoas precisam acreditar. Isso é o que faz com que elas tenham força.”

Matar o buda

Segundo Popcak, a crença vem na esteira da fé e está associada às verdades que a pessoa assume como consequência de sua jornada particular, as quais podem envolver aspectos espirituais e religiosos. Como todos nós temos a possibilidade de evoluir ao longo da vida, as experiências se acumulam e podem transformar nossas crenças. Por isso, é saudável, tratando-se de crescimento interior, manter uma postura de dúvida nessa área.

Era o que recomendava Sidarta Gautama, o Buda, quando disse: “Se você cruzar na rua com o Buda, mate-o”. Em vez de ater-se permanentemente a um conjunto de princípios, personificado por esse Buda externo com que se poderia cruzar na rua, é preferível viver as próprias experiências, refletir sobre elas e extrair suas conclusões – um processo de constante atualização.

Buda: mais importante que eventuais modelos de existência são as próprias experiências de vida e nossas reflexões sobre elas (Foto: iStockphoto)

 

Em geral, a fé leva a pessoa a algum tipo de religião, mas não se deve descartar outras direções. Um estudo publicado em julho de 2016 na revista Personality and Individual Differences, feito por Olga Stavrova, Daniel Ehlebracht e Detlef Fetchenhauer, da Universidade de Colônia (Alemanha), mostrou a ascensão da fé no progresso tecnológico e científico como fator de satisfação na vida e de boas expectativas para o futuro.

Os entrevistados que manifestaram fé na tecnologia e na ciência ou em uma religião eram os que se diziam mais satisfeitos com a vida. Essa conexão se mostrou positiva e significativa entre os adeptos em ciência e tecnologia em 69 de 72 países avaliados. A fé religiosa teve comportamento similar em 28 desses países.

Os pesquisadores descobriram ainda que os fãs da ciência e da tecnologia não tendem a descartar a religião, o que indica que as duas vertentes podem coexistir. Isso ocorre apesar de o pensamento analítico, ligado à ciência, e o empático, relacionado às religiões, acionarem circuitos neurais diferentes no cérebro que, enquanto trabalham, relegam o “oponente” a segundo plano (leia no texto “Circuitos diversos” ao final a reportagem).

A ideia é reforçada por um levantamento apresentado por Baruh Aba Shalev no livro Religion of Nobel Prize Winners, de 2003: 89,5% dos vencedores do Prêmio Nobel entre 1901 e 2000 se disseram adeptos de uma religião e 10,5% se declararam ateus, agnósticos ou livres-pensadores. Seguir uma religião, assim, não impede ninguém de ser um ótimo cientista.

Perda e luto

Embora a morte seja o desfecho natural da vida, os falecimentos inesperados são os mais chocantes e os que mais demandam a capacidade de superação das pessoas. Apesar das evidências no sentido de que falhas humanas causaram a queda do avião da Chapecoense, o fato de que todos os que estavam ali viviam ou acompanhavam o momento de glória maior do time catarinense, a caminho de sua primeira final em um torneio continental, deixa uma marca profunda.

 

Assimilar o impacto de eventos como esse é um dos testes mais exigentes para a fé de qualquer um. Hal French, professor de psicologia da religião na Universidade da Carolina do Sul  (EUA), conta que sua enteada, que sobreviveu aos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 em Nova York, reconfortou-se na família para seguir adiante. Sobreviventes das bombas atômicas jogadas sobre Hiroshima e Nagasaki em 1945 lhe disseram que encontraram consolo na natureza e na floração anual das cerejeiras. Outras pessoas nessas circunstâncias, porém, reagem de forma diferente, e o abalo na fé pode fazer as feridas demorarem mais a cicatrizar.

A importância de falar

Impulsionada pela mídia e pelas redes sociais, a queda do avião da Chapecoense mobilizou uma rede de apoio nos quatro cantos do mundo. Essas demonstrações de fé solidária, cujo ápice foram as cerimônias nos estádios da Chapecoense e de Medellín, na Colômbia, ajudam na transição dos impactados pela tragédia para o estágio no qual os agora ausentes permanecerão vivos nas lembranças. “É importante falar sobre a pessoa amada que partiu, porque isso nos mantém próximos dela. A dor não expressada nos consome”, observa Cynthia.

A união de fé e solidariedade também pode ser vista em crises econômicas e sociais. Daniel L. Chen, da Universidade de Chicago (EUA), flagrou esse aspecto em um estudo de 2010, publicado no Journal of Political Economy, ao analisar como muitos indonésios se juntaram em grupos de estudo do Alcorão e em escolas islâmicas em busca de suporte emocional e de recursos durante a grave crise de 1997-1998 no país. Além do vigor religioso notado, as redes sociais formadas ajudaram os mais pobres a obter crédito e proporcionaram aos participantes uma espécie de seguro social antes inexistente.

Wafa Hakim Orman, professora associada da Universidade do Alabama (EUA), observou um processo de certo modo similar nas crises americanas da agricultura, nos anos 1980, e imobiliária, em 2007. A fé, assim, tem de ser cultivada como uma ferramenta básica na travessia da vida que não dispensa a autorreflexão sobre as experiências por que passamos, porque é com a ajuda dela que evoluímos. Era a esse equilíbrio que o filósofo polonês Alfred Korzybski se referia quando disse: “Há duas formas de passar facilmente pela vida: acreditar em tudo ou duvidar de tudo. Ambas nos livram de pensar”.


Circuitos diversos

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O cérebro trata mesmo de forma diferente os pensamentos voltados para a ciência e a religião, indica um estudo americano divulgado em março de 2016 na revista PLOS ONE. A conclusão reforça uma pesquisa anterior, feita com imagens de ressonância magnética funcional, que revelara a existência de redes neurais separadas para o pensamento crítico e o comportamento social.

Essas duas redes frequentemente criariam tensões entre si, uma tentando dominar a outra. Quando o pensamento crítico ou analítico é mais necessário, a rede social (ou empática) é reprimida; já situações que requerem empatia ou relacionamentos pessoais “empurram” a rede analítica para o segundo plano. Como resultado de interações sociais ou culturais, as religiões acionam mais a rede empática do que a analítica.

Pesquisadores da Case Wester University (EUA) liderados pelo professor associado de filosofia Anthony Jack realizaram oito experimentos nos quais dividiram os voluntários em dois grupos: religiosos e não (ou pouco) religiosos. Os cientistas notaram que quanto mais empática se mostra a pessoa, maior é a tendência de que ela seja religiosa. Mas isso não indica que a inteligência está necessariamente associada à ausência de religiosidade, alertam os pesquisadores: segundo vários estudos, os cientistas que consideram haver um conflito constante entre a ciência e a religião são franca minoria.


Antídoto para o luto

Francisco: os mortos “estão nas mãos boas e fortes de Deus” (Foto: iStockphoto)
Francisco: os mortos “estão nas mãos boas e fortes de Deus” (Foto: iStockphoto)

De acordo com o papa Francisco, a fé é o remédio para restituir a esperança das famílias que se encontram em situações de dor como o luto. “A perda de um filho ou de uma filha é como se o tempo parasse. Abre-se um buraco que engole o passado e também o futuro”. Casos de mortes súbitas, como na queda do avião que transportava a delegação da Chapecoense, na Colômbia, deixam muitas vezes as pessoas sem explicação para a sua dor, e isso pode levá-las a colocar a culpa em Deus.

Mas Francisco lembra que a morte não detém a última palavra, e conscientizar-se disso é um verdadeiro ato de fé. “Na fé, podemos nos consolar um com o outro sabendo que o Senhor venceu a morte de uma vez por todas. Nossos entes queridos não desapareceram na escuridão do nada. A esperança nos assegura que eles estão nas mãos boas e fortes de Deus.”