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Internet das coisas. Que rastros você está deixando?

 

O pesadelo futurista descrito no romance “1984” ganha contornos com os quais nem mesmo o autor, George Orwel, jamais sonhou. Os progressos da chamada Internet das Coisas permitem que sejamos vigiados no interior de nossas casas, seja por hackers, seja por espiões governamentais. Como se isso não bastasse, as redes sociais passaram a permitir todo o tipo de manipulações, e começa a ser difícil, nestes tempos de pós-verdade, distinguir uma verdadeira mentira de um falso fato…

Por: Ian Bogost

Fonte: Revista The Atlantic, de Washington D.C.

Tenho medo. Pela minha família. Pela minha casa, pelas minhas magras posses e pelos meus tesouros. E não devo ser o único. “A felicidade é estar liberto do medo”, afirma Don Draper no episódio piloto da série Mad Men. As empresas propõem aos consumidores soluções para estes medos – mesmo que eles sejam apenas imaginários. Desde o Listerine, elixir bucal para remediar uma doença que está por todo o lado, a halitose, à Nike, cujas solas dos tênis servem mais para tratar os pés do que para correr. Ou a Apple, cujas telas protetoras ultramodernas em vidro e alumínio dissimulam o vício de utilização.

Tal como os primeiros telefones celulares que adquirimos por causa de hipotéticas emergências, a maioria dos aparelhos inteligentes ligados à internet promete apaziguar os nossos medos. Câmaras de vigilância para detectar movimentos e impedir as babás de torturarem os nossos filhos. Portas com videovigilância para manter à distância vendedores de óleo de cascavel e ladrões. Sem esquecer as balanças inteligentes ligadas ao botijão de gás da churrasqueira para que os assados fiquem perfeitos. Ou sensores que evitem inundações e infiltrações nas paredes.

A proliferação de objetos interligados eletronicamente e o crescente número de casas inteligentes produzem uma quantidade colossal de dados pessoais que podem ser processados e usados por empresas e governos. Como nunca antes, as novas tecnologias põem em perigo a vida privada.

Tudo isso é no mínimo inofensivo e no máximo inútil. Mas a partir do momento em que os consumidores começam a utilizar em massa essas tecnologias é caso para nos preocuparmos, porque os aparelhos inteligentes podem apresentar problemas de segurança bastante graves. A Internet das Coisas promete substituir a incerteza do medo pela certeza da vigilância. No entanto, para podermos vigiar tudo, é necessário que os nossos aparelhos nos espiem. E já o fazem mais e bem melhor do que pensamos.

No meu smartphone utilizo o aplicativo Sense. Em tempo real, posso consultar um gráfico do consumo elétrico da minha casa. Se ligar um interruptor, a curva sobe ligeiramente. Os dados são recolhidos por um analisador de rede instalado no quadro elétrico de casa. É uma pequena caixa vermelha ligada à internet com uma antena wi-fi e, simultaneamente, ao servidor do Sense e ao próprio aplicativo.

Em outra imagem, pequenos pontos representam os aparelhos que estão gastando eletricidade no meu lar: o ponto maior corresponde ao ar condicionado, a seguir vem o forno (os biscoitos estão quase assados) e depois as luzes. Apago a luz e, como por magia, a lâmpada desaparece da minha lista no aplicativo. Nem as minhas lâmpadas nem o meu forno estão ligados à internet, mas o meu celular está. O aplicativo sabe exatamente em que momento os aparelhos estão sendo utilizados, durante quanto tempo e qual o respetivo consumo de energia.

Esse método de tratamento do sinal chama-se desagregação da curva de consumo energético, ou “medição não intrusiva de gasto de energia”. É um aparelho que existe desde 1980. A desagregação consiste em decompor o consumo elétrico total de um edifício, aparelho por aparelho (ar condicionado, eletrodomésticos, iluminação, etc.). Desta forma, pode se controlar o consumo e a eficiência de redes elétricas residenciais e comerciais. Contudo, a Sense Labs, empresa com sede em Cambridge (Massachusetts, EUA) que me emprestou a caixa vermelha instalada no meu contador de eletricidade, tem outras ambições.

Segundo o seu presidente, Mike Philips, a empresa é também especialista em reconhecimento de voz. Tem como associada uma outra firma, a SpeechWorks, cotada na Bolsa desde 2000 e que desenvolveu serviços destinados inicialmente aos sistemas de telefônicos de voz automatizados das empresas. Estas mesmas tecnologias que permitem aos computadores reconhecerem e tratarem comandos de voz também podem ser aplicados à gestão de redes elétricas.

Para desagregar a curva de consumo, o aplicativo detecta no contador alterações de tensão íntimas e outros sinais que constituem a assinatura de cada equipamento. A detecção das assinaturas é aperfeiçoada por algoritmos de aprendizagem automática: ao partilhar as constantes identificadas que correspondem a cada aparelho elétrico detectado pelos módulos Sense, o reconhecimento é mais rápido e perfeito.

Poderíamos acreditar que esse aplicativo foi feito para consumidores maníacos, desejosos de ligar todos os objetos caseiros à internet só pelo prazer de os poderem encontrar com o celular, e também para serem ajudados controlar a conta da luz e a reduzir a pegada ecológica do lar, sem falar nos que estão sempre receosos de ter deixado o forno ou o ferro de passar ligados.

A roupa já está lavada?

Mas a Sense Labs vai mais longe, como explica Philips. O sistema pode mostrar à distância o que se passa nas nossas casas. Por exemplo, se um utilizador da Sense constatar que a televisão está acesa às 16 horas, pode concluir que os filhos já chegaram da escola. Se o forno se acende, sabe que alguém vai assar o frango. Verificando a hora a que a porta da garagem se abriu durante a noite, pode saber se os filhos chegaram em casa a uma hora razoável.

Eis a razão pela qual a Sense acredita que, a curto prazo, poderá propor serviços domóticos mais aperfeiçoados. Alguns poderão substituir aparelhos de uso corrente. Por exemplo, uma das primeiras aplicações da Internet das Coisas é um higrômetro ligado ao wi-fi para detectar umidade. Um conjunto de sensores tipo Twine instalados no porão pode, em caso de inundação, enviar-nos uma mensagem. Dentro em breve a tecnologia Sense também poderá apagar ou acender aparelhos ligados à internet.

Na prática, até mesmo relatórios sintéticos, como o envio de uma notificação dizendo que a máquina de lavar roupa encerrou o programa, ainda estão longe da realidade. O melhor que a aplicação consegue é publicar uma lista de início e término de acontecimentos para os diferentes aparelhos que consegue identificar. A Sense demora alguns dias para detectar os aparelhos existentes numa casa. Se houver um conjunto relativamente completo de aparelhos, o trabalho pode demorar um mês, explica Philips. Mesmo assim, e ao fim deste período, o quadro que a Sense me apresenta da minha casa ainda tem muitas lacunas: a aplicação só detectou algumas lâmpadas e muitos dos meus equipamentos desaparecem do programa tão depressa quanto aparecem.

Ao contrário de outros aparelhos interligados que produzem resultados imediatos, o equipamento da Sense é lento e instável. Tem de ser instalado por um eletricista profissional (para evitar riscos de eletrocussão). Uma vez instalado, necessita de um sinal wi-fi para funcionar corretamente, mas algumas partes da casa, como o porão, a garagem e outros locais ligados ao quadro elétrico podem não estar ao alcance do roteador wi-fi da casa. O Sense pode utilizar uma versão com cabo, mas não conheço muita gente que ligue um cabo de fibra ótica a um disjuntor.

A desagregação da curva de consumo ainda está nos primórdios. O Sense precisa de tempo para afinar a sua análise, o que só poderá ser conseguido se houver mais utilizadores do sistema, permitindo aos algoritmos automáticos alargarem a base de conhecimento do serviço.

O aplicativo, no entanto, parece anunciar algo de novo e duradouro em matéria de aparelhos ligados a internet. Mas para isso precisa oferecer um serviço suficientemente convincente que leve os particulares a aceitarem instalar a caixa de forma semi-permanente nos seus lares. Isto está longe de se tornar realidade, porque após tantos ataques a objetos ligados e tantas piratarias de lâmpadas economizadoras efetuadas com drones, os consumidores podem recear pela sua privacidade.

Em relação à segurança, o Sense é teoricamente mais avançado do que os aparelhos ligados clássicos (frequentemente mal protegidos e instalados em massa), porque, ao substituir os sensores dos diferentes aparelhos por um único analisador ligado diretamente ao quadro elétrico, limita os pontos de entrada dos cyber-criminosos. Desde que a caixa do Sense não seja ela própria pirateada, é claro.

Os receios quanto à invasão da vida privada são mais difíceis de diluir. A partir da atividade dos aparelhos elétricos de uma casa, o Sense recolhe e registra uma imensidão de metadados, tão invasivos como preciosos. Os primeiros utilizadores do termostato inteligente Nest não estavam completamente cientes das consequências da sua capacidade de vigiar a presença humana na casa. Em 2014, quando a Google comprou a Nest por 3,2 bilhões de dólares adquiriu também a capacidade de associar uma imagem detalhada dos dados domésticos daqueles que sabia serem seus utilizadores: as suas pesquisas na internet, os locais que visitaram, etc.

O Sense permite também recolher dados específicos em tempo real sobre tudo o que fazemos no nosso lar, ou seja, saber tudo sobre os nossos hábitos e gestos cotidianos. Registrar a atividade da porta da garagem ou do forno pode parecer inocente, mas é preciso lembrar muitos que os metadados já estão sendo utilizados para outros fins, por exemplo, quando tratamos com seguradoras ou bancos.

A análise da frequência e dos horários de abertura e fecho da porta da garagem permite avaliar o risco-automóvel numa determinada família. Espiar a atividade de um forno elétrico, de uma placa de fogão, de uma centrifugadora ou de um micro-ondas possibilita traçar o padrão dos hábitos alimentares de uma casa e, consequentemente, o estado global da saúde dos seus habitantes.

Tem uma serra circular ou um vibrador? Eis algo que pode interessar à sua seguradora ou ao seu empregador. Um recrutador pode preferir um candidato que utilize regularmente o ferro de engomar em detrimento de outro que seja mais adepto do vibrador. Para serviços de manutenção, um candidato que passe o tempo de lazer a fazer bricolagem e trabalhos domésticos com equipamentos elétricos pode representar mais riscos do que outro que fique no sofá vendo televisão.

A desagregação da curva de consumo abre também a porta a aplicações comerciais. Imaginemos que a Amazon, o Wallmart ou a Google sabem não apenas o que os consumidores procuram e compram como quais produtos do dia a dia não eletrônicos eles possuem e com que frequência os utilizam. Seria possível estabelecer as mais diversas correlações. Haverá ligação entre os gostos de um indivíduo em matéria de filmes pornográficos e a sua propensão para o consumo de álcool? Entre os ritmos de sono – deduzidos pela atividade da iluminação interior ou da televisão – e a tendência para efetuar compras impulsivas pela internet? Os homens que fazem a barba todos os dias comprarão cuecas tipo boxers e os que não o fazem preferem as tangas?

Conversas com o liquidificador

Muito em breve, o Facebook vai saber estes pormenores e dirigirá a publicidade para estes alvos. Por enquanto, o Sense não consegue fornecer informações tão precisas. Mas o grau de pormenor da análise da utilização de aparelhos elétricos melhora todos os dias. Graças à aprendizagem automática, mas também porque o algoritmo de desagregação poderá ser integrado nos objetos ligados à rede elétrica.

Atualmente, cada aparelho tem de ser ligado individualmente a uma rede doméstica. É também por isso que são difíceis de controlar e pouco seguros. Mas é também o que permite utilizar os objetos ditos “inteligentes” como objetos vulgares: podemos sempre desativar as funções de wi-fi da chaleira elétrica ou do frigorífico e preparar um chá ou colocar os alimentos no frigorífico sem qualquer tipo de registro. Mas quando estes dispositivos estiverem equipados com um mecanismo de análise de consumo elétrico do tipo do Sense, o sinal de identificação associa-se aos aparelhos e os dados recolhidos durante a sua utilização passam diretamente pela instalação elétrica, sem conhecimento do consumidor.

Perguntei a Justin Romberg, professor de Engenharia Eletrotécnica e Informática na Universidade Georgia Tech (Atlanta, (Georgia, EUA) e especialista em tratamento de sinais digitais, o que pensava deste assunto. Para uma batedeira ou uma máquina de barbear conversarem com um contador elétrico, basta-lhes enviar um impulso elétrico pré-definido através dos fios. Dessa forma os seus ciclos de utilização ficarão referenciados, o mesmo podendo suceder a dados secundários das atividades dos seus utilizadores.

Tudo isto ainda está a alguns anos de distância, mas podemos prever que, num futuro mais ou menos próximo, os aparelhos eletrodomésticos domésticos venham equipados em série, de modo a permitir a transmissão de dados ao quadro elétrico e daí a um banco de dados remoto instalado na rede. lsso revelará, inevitável e furtivamente, a utilização que os proprietários fazem dos seus eletrodomésticos.

Em termos de medidas “não intrusivas” ainda estamos muito longe. Os responsáveis pelo Sense Labs não desvalorizam as preocupações relacionadas com a proteção de dados privados. Mike Philips reconhece que só garantindo a confiança do consumidor o seu produto se desenvolverá, mas também acredita poder merecer essa confiança. A política de confidencialidade da empresa proíbe a venda de dados privados sem o consentimento explícito do consumidor e garante a eliminação dos dados do utilizador se este assim solicitar.

Apesar disso, nada muda mais rapidamente do que a política de confidencialidade de uma empresa de tecnologia. Para uma companhia financiada com capital de risco, o sucesso da mesma passa por poder ser vendida. A Sense dispõe, apesar de tudo, de uma estrutura financeira diferente da de outras empresas emergentes sequiosas de dados. Em setembro, realizou um au- mento de capital de milhões de dólares, liderado por duas empresas de capital de risco do setor energético que procuram novos nichos nos mercados tradicionais.

Uma é a empresa de capital de risco Royal Dutch Shell e, a outra, a Energy Impact Partners, fundo de investimento totalmente capitalizado por fornecedores de energia. Os contadores elétricos inteligentes, que automatizam o faturamento e ajudam os fornecedores de energia a melhor adaptar a oferta à procura, alimentaram a suspeita dos consumidores relativamente aos grandes monopólios.

Lindsa Luger, diretora-geral da Energy Impact Partners, afirma que os investidores do seu fundo querem cooperar mais estreitamente com os clientes finais. O cidadão comum não está verdadeiramente interessado nas companhias de eletricidade mas sim na sua casa – o bem mais precioso. Um produto como o Sense pode permitir que os distribuidores de energia sensibilizem os utilizadores para terem consumos sustentáveis (através da vigilância dos seus gastos) e os aliciem para serviços de domótica. Muitas empresas podem ver no modelo empresarial da Sense um alvo sedutor: as companhias de eletricidade, base do capital da empresa, são todas potenciais recompradoras.

Google e Amazon também poderiam estar interessadas, reconhece Luger, bem como companhias de seguros e fabricantes interessados em dados em tempo real fornecidos pelos seus equipamentos. Qualquer que seja o caso, o futuro da análise do consumo residencial em grande escala será seguramente um futuro de vigilância permanente. Se este futuro se converter numa distopia, o utilizador poderá sempre chamar um eletricista e mandar desligar o Sense do quadro elétrico.

Mas as coisas nunca são assim tão simples, menos ainda quando os aparelhos inovadores entram nos hábitos de consumo. Conseguimos nos imaginar fazendo pesquisas na internet sem o Google ou preservando os contatos com os amigos sem o Facebook ou desenvolvendo uma rede profissional sem o Linkedin?

Os utilizadores já demonstraram que aceitam acesso de terceiros aos seus dados pessoais em troca de um bom produto. As seguradoras estão na corrida em direção a este nicho. Muito em breve vai ser impossível contratar uma seguradora sem ligar um aparelho inteligente ao centro de diagnóstico da viatura, fazer um seguro de saúde sem ter instalado uma aplicação para registrar a forma física, ou pedir um empréstimo bancário sem revelar todas as nossas atividades nas redes sociais. E, talvez, mesmo a nossa tarifa de eletricidade venha a estar condicionada à presença de um analisador de curva de consumo ligado a todos os equipamentos do lar.

Acrescentemos a isso todas as incertezas que existem sobre as modalidades de cooperação entre as empresas tecnológicas num país sob a presidência de Donald Trump: o apelo à cedência de informações sobre a nossa vida privada é apresentado como um justo sacrifício em troca de serviços gratuitos. Mas pode mito bem ser a antecâmara de uma sociedade de vigilância permanente sobre nossos atos e costumes, sobre nossa vida. Tudo isso por causa de um simples aparelho de medição de consumo elétrico de 250 dólares que, inicialmente, poucos compradores atrairá, gerido por pessoas bem-intencionadas? Mas as aparências iludem e quando nos apercebermos do quadro para onde caminhamos poderá ser tarde demais.

O perigo de um aparelho tão inteligente como o Sense está exatamente naquilo que ele promete: ele é o futuro, e a sua utilização em larga escala é inevitável. Precisamos ter isso sempre em mente todas as vezes que ligarmos algum aparelho.

Qualquer dia desses o ínfimo sinal do consumo de corrente do liquidificador vai sair de nossa cozinha, alojar-se numa nuvem digital, captado por agências federais, por anunciantes e empresas de estatísticas e aí permanecer indefinidamente.

(*) Ian Bogost é escritor premiado, designer de jogos de vídeo considerados “sérios” que tratam de temas sociais e políticos tais como segurança aeroportuária, dívidas dos consumidores, epidemias de gripe. É professor de computação interativa no Georgia Institute of Technology (Atlanta, Georgia).