Por: Arwa Mahdawi (*) – Jornal The Guardian
O OkCupid – um dos mais acessados sites de encontros amorosos do mundo – sabe perfeitamente qual é a probabilidade de Maria Célia ir para a cama já no primeiro encontro. A NSA – agência de segurança dos Estados Unidos – sabe que Maria Célia come quinoa em excesso. Todos os 962 amigos de Maria Célia no Facebook já a viram usando um biquíni cavadão. Sem perceber, vamos expondo os mínimos detalhes de nossas vidas ao manipular os recursos da internet e do cartão de crédito.
Num mundo digital como o nosso, onde o excesso de compartilhamento é visto com agrado e as marcas comerciais sabem mais sobre seus clientes do que os próprios familiares deles, a privacidade tende a se tornar, rapidamente, a questão número um para definir o nosso tempo.
É verdade que, apesar das constantes proclamações em torno do fim da privacidade, as noticias sobre a sua morte foram grandemente exageradas. A privacidade não morreu mas está se tornando muito, muito cara.
Não há muito tempo, a maior parte de nós usava serviços como o Facebook ou o Google sem questionar a troca de valores subjacente e sem perceber que, se não pagamos pelo produto, é porque somos nós mesmos o produto em venda. O azarão Edward Snowden, com todo o seu séquito escancarado de denúncias, mudou tudo isso. De repente, os terroristas, os teóricos da conspiração e os ativistas deixaram de ser os únicos a se preocupar com o rastreamento dos dados que espalhamos na internet. A privacidade se tornou uma preocupação geral e fundamental, bem como uma oportunidade para negócios bem lucrativos.
Serviços de proteção da privacidade
Você está preocupado com a segurança do telefone onde guarda todos os seus dados? Já pode encomendar um Blackphone de privacidade reforçada por 629 dólares (cerca de 2 mil reais) ou escolher um “telefone Snowden” de 189 dólares (600 reais) equipado com cifragem de 128 bits. Quer apagar a sua informação das bases de dados de marketing ou criar alertas de privacidade em tempo real? Ha um serviço de proteção da privacidade que faz isso, mas cobrando uma taxa. A indústria da privacidade está no auge: calculava-se em 2013 que o mercado de produtos de gestão da segurança nos celulares valesse, ele sozinho, 560 milhões de dólares (403 milhões de euros). Em 2015 esse valor tinha redobrado, chegando a um bilhão de dólares!
No entanto, à medida que as empresas começam a perceber que a privacidade está se tornando um fator de diferenciação no mercado, pelo qual as pessoas estão dispostas a pagar mais, vemos a “Big Privacy” substituindo a “Big Data” e se tornando o lema preferido do grande capital. A isto soma-se uma nova abordagem da gestão da nossa informação pessoal, desta vez a pretexto de a proteger e não de a vender. Parece que a privacidade, de direito humano básico, está se convertendo em slogan publicitário da moda.
É claro que há muitas formas gratuitas de proteger a sua vida privada. Você pode desativar os cookies, desligar o Bluetooth do smartphone, deixar de usar cartões de crédito. etc. Mas estas táticas tendem a ser pouco práticas e complicadas ou a exigir um nível de conhecimento técnico que a maioria das pessoas não possui. Se você usa uma rede privada virtual ou procura alternativas seguras ao Google, é mais que provável que tenha um certo nível de formação e provenha de um contexto socioeconômico privilegiado.
O fosso digital está se transformando em um fosso de privacidade. Pensemos no motor de busca DuckDuckGo, centrado na segurança. Não guarda qualquer informação sobre os clientes, mas os dados externos indicam que, em comparação com o resto da população americana que usa a internet, os utilizadores do DuckDuckGo são mais velhos, mais ricos e majoritariamente homens.
Privacidade, um domínio de privilegiados
Quer implique conduzir um automóvel em vez de tomar o ônibus ou viver numa casa escondida em vez de num apartamento apinhado, a privacidade sempre foi um privilégio dos ricos. Embora possamos falar da natureza democratizante da internet, parece que a privacidade online está se tornando, também, um domínio de privilegiados. Um artigo recente do jornal The New York Times dizia que a privacidade começa a ser um bem de luxo. Embora a desigualdade em matéria de vida privada seja preocupante, o pior não é a privacidade poder tornar-se um bem de luxo. É o fato de poder ser considerada um bem.
No festival South by Southwest deste ano, frequentado pelas indústrias tecnológicas e de marketing, Julian Assange afirmou, por videoconferência: “As pessoas são produtos vendidos aos anunciantes”. Ele disse isso numa conversa com o fundador de uma agência publicitária que lhe pagou 10 mil dólares para aparecer. A indústria da privacidade não muda o fato de a maioria das pessoas serem produtos vendidos a anunciantes. Só muda a forma como são vendidos.
(*) Arwa Mahdawi é diretora de estratégia para a América do Norte da consultora Contagious Communications. Comenta regularmente as novidades das indústrias da comunicação e tecnologia no diário britânico The Guardian.