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Estado Big Brother. Um verdadeiro negócio da China

 

Na ausência de normas de regulamentação sobre a proteção de dados pessoais, a China recolhe uma imensidão de informações sobre seus cidadãos. O país ocupa o primeiro lugar, a nível mundial, em capacidade de análise e em intercâmbio dessa enorme massa de dados – aquilo que se chama “megadados”- e tenciona tirar proveito do seu valor comercial, reforçando, ao mesmo tempo, o controle exercido sobre a população.

 Por: Wu Jing

Fonte: Jornal Duanchuanmeu, Hong Kong

Quem guarda os dados dos milhões de chineses? A multiplicação de centros de dados na China abre a porta a um novo e lucrativo negócio. Apesar de o seu desempenho não ser ainda tão bom quanto o pretendido, permite ambições políticas de controle social em larga escala.

Big Data é um verdadeiro negócio da China. Essenciais para exercer o poder e fundamentais para a reforma do governo da sociedade, os megadados são promovi-dos como instrumento de uma estratégia nacional. O Big Data muda a vida de todos – Estado, empresas, indivíduos. A China está no grupo da frente, a nível mundial, no que diz respeito a recursos digitais disponíveis e registra um grande avanço na análise e no intercâmbio de dados. Graças a um forte apoio do governo e à reduzida importância que a população atribui ao respeito pela sua vida privada, o Big Data encarna a vontade da China tomar a dianteira nessa área.

Agora, quando vamos ao dentista, a mínima cárie fica registrada na base de dados dos serviços de saúde. Basta uma palavra-passe para os registros centrais saberem quantas pessoas solteiras moram na nossa rua. No mês passado, comprei dois livros e passei três horas pesquisando cores de esmaltes de unhas: tudo isto fica registrado no Taobao (principal site chinês de compras eletrônicas, filial do Alibaba).

O hábito de nos conectarmos às redes sociais logo pela manhã vai enriquecer as listas da Tencent (empresa-mãe das redes sociais e do WeChat), enquanto o motor de busca Baidu ficou sabendo que, antes do Dia de São Valentim, andamos à procura de bilhetes de avião baratos. Dezenas de milhares dos “nossos” dados são recolhidos e reunidos e formam gigantescos conjuntos chamados Big Data, “grandes dados” ou “megadados”.

A consultora McKinsey define o Big Data como resultado do recolhimento de dados, cujo volume ultrapassa largamente a capacidade habitual de tratamento dos softwares de bases de dados. Os megadados distinguem-se dos dados clássicos pela diversidade das suas origens, a variedade e a elevadíssima velocidade de renovação: além disso, o seu caráter complexo e superabundante exige que os dados sejam “clarificados” para terem valor.

Estes são úteis para o marketing, setor de aplicação por excelência, mas também para a gestão de risco e a gestão de precisão. Os dados recolhidos pelas empresas de eletricidade, por exemplo, permitem ao setor financeiro controlar melhor os riscos: uma utilização anormal de eletricidade por parte de uma empresa aumenta a probabilidade de esta sofrer problemas de gestão, o que levará os bancos a serem mais prudentes na concessão de empréstimos.

No domínio público, as aplicações são ainda mais vastas. É possível controlar fluxos humanos em espaços públicos graças aos dados enviados pelos telefones celulares e, assim, evitar congestionamentos ou ajustar melhor a oferta na área do transporte.

Seguindo as opiniões expressas nas redes sociais, desta forma consegue-se evitar explosões de descontentamento.

Vídeo: Piscina na China

Investimentos milionários

Os centros de dados apareceram na China por volta de 2010. Inicialmente, os profissionais acreditavam que este novo setor de atividade podia gerar um volume de negócios de milhares de yuans, mas rapidamente

Os mais entusiastas consideram o Big Data o “novo ouro negro” e pensam que estamos passando da era do capitalismo financeiro para a era do capitalismo digital.

O mercado oferece três grandes tipos de serviços: fornecimento de dados em bruto, análise de tendências, ou de resultados na base de dados em bruto, e mediação entre dois parceiros comerciais.

176 milhões – Este é o número de câmaras de vigilância existentes na China em 2016, segundo estimativas da empresa de análise financeira IHS Markit. Compare-se este número com os 50 milhões de câmaras de vigilância no território dos Estados Unidos da América, no mesmo ano. Diga-se de passagem que o mercado chinês da vídeo-vigilância registou um aumento vertiginoso, numa média anual de 13,3% entre 2012 e 2017 comparativamente a 2,6% no resto do mundo. Além disso, segundo o Daily Mail, mais de 11% das câmaras chinesas estão equipadas com um sistema de inteligência artificial, a fim de se facilitar o reconhecimento facial. E a instalação deste equipamento não vai parar tão cedo. Segundo as previsões da IHS Markit para 2018, a China representará mais de 46% do volume de negócios mundial dos equipamentos de vídeo-vigilância profissional”

Os dados em bruto são quase sempre recolhidos a partir de sites e depois tratados. Por exemplo, uma plataforma reúne informações relativas a 500 mil hoteis na China e no estrangeiro, com quartos, preços e avaliações e vende-as em pacotes ao preço de 2500 yuans (320 euros) o lote. Em outra modalidade, o acesso é pago por unidade: é o caso de um site que vende a 0,01 yuan (1 yuan = 0,13 euros) cada elemento da sua base de dados relativa a arritmia cardíaca.

No entanto, a maior parte das empresas não tem capacidade para analisar estes números e, para isso, recorre a empresas especializadas. A AliCloud fornece serviços como esse: na imensa base de dados dos utilizadores da Alibaba (empresa-mãe, o seu motor de busca de marketing Open Ad Monitoring permite filtrar a categoria de consumidores visados para fazer marketing de precisão. Se, por hipótese, um laboratório pretender promover pílulas de cálcio a um preço muito caro, os filtros permitem selecionar pessoas de meia-idade ou seniores, cujas despesas com produtos de saúde são relativamente elevadas.

Existem empresas que se limitam a estabelecer pontes. É o caso da GBDEX, o centro de dados de Guiyang (capital da província de Guizhou, no Sudoeste da China, onde a Apple localizou a sua iCloud). Quando quiseram pôr à venda parte dos seus dados médicos, as autoridades de saúde locais começaram por fixar o preço com o site da GBDEX, que as apresentou no mercado. Uma empresa farmacêutica da cidade comprou os dados que, depois de analisados, lhe permitirão definir produtos mais direcionados. O site cobrou uma comissão de 40% pela transação.

“Dentro em breve, será o vendedor que estabelecerá o preço”, explica Zhu Guohui, diretor adjunto da GBDEX. Trata-se da maior plataforma de comercialização de megadados da China, criada em 2015, com o apoio da província de Guizhou e com a bênção do primeiro-ministro, Li Keqiang.

Nos dois últimos anos, as autoridades locais e nacionais lançaram medidas de apoio à exploração do Big Data. Nasceram, assim, mais de 20 centros de grandes dados, em especial em cidades como Guiyang, Xangai, Wuhan e Harbin.

Os poderes públicos tanto são vendedores como compradores. Pode acontecer que a direção dos transportes da região “X” compre da sua homóloga da região “Y” dados que lhe sejam úteis, ou que os serviços de segurança pública adquiram informações das empresas de telecomunicações.

ÓCULOS DE RECONHECIMENTO FACIAL PARA A POLÍCIA – Na China, os óculos de sol que os policiais usam não são uma modernice adotada para imitar os agentes da série Miami Vice. Fazem parte do arsenal de vigilância de alta tecnologia à disposição das forças de segurança desde o início do ano. Com uma câmara incorporada, esses óculos permitem reconhecer, em meio à multidão, indivíduos cujo rosto está gravado numa base de dados. “Além dos óculos, o sistema chinês inclui um aparelho móvel que os agentes trazem consigo e que inclui dados off-line, o que permite que o sistema funcione rapidamente”, explica a publicação Popular Science. Não é necessário, portanto, estar ligado ao sistema para se fazer buscas num computador central. Tal equipamento permitiu, por exemplo, interrogar sete suspeitos de atos criminosos e identificar 26 pessoas que viajavam sob identidade falsa, segundo informações dos meios de comunicação chineses citados em sites ocidentais, sobretudo a BBC News. No entanto, como todos os sistemas de Inteligência Artificial, o reconhecimento facial tem de basear-se numa quantidade gigantesca de dados para “aprender” a executar  corretamente a tarefa para a qual foi concebido. “E, apesar da enorme sofisticação da tecnologia, esta área apresenta ainda uma série de falhas,” insiste a Popular Science. Essa revista recorda que o mais difícil é evitar os “falsos positivos”, ou seja, a indicação de pessoas como sendo procuradas pela polícia, quando na realidade não o são.

Investimentos milionários

Os centros de dados apareceram na China por volta de 2010. Inicialmente, os profissionais acreditavam que este novo setor de atividade podia gerar um volume de negócios de milhares de yuans, mas rapidamente verificaram que não era assim. Segundo um estudo publicado em janeiro pela revista de economia Caijing, as atividades da maioria desses centros, mesmo com o apoio e o financiamento das autoridades, não vão de vento em popa, e os fornecedores privados mal conseguem ter algum lucro.

Algumas autoridades gastam milhões de yuans nos seus programas de grandes dados, enquanto as plataformas criadas não têm capacidade para tratar essas informações. A construção de alguns centros teve como único objetivo apoderar-se dos terrenos e das facilidades concedidas pelas autoridades para a sua criação.

Em outubro de 2017, ao fim de mais de dois anos de atividade, a GBDEX, que fora beneficiada com enormes subsídios estatais, tinha realizado apenas 120 milhões de yuans (15,5 milhões de euros) em transações. São raros os centros de intercâmbio de megadados que alcançam mais de dez milhões de yuans de rendimento anual, segundo um profissional entrevistado pela Caijing. Até o grande fornecedor de dados, o Datatang, registrou perdas de exploração de quatro milhões de yuans em seis meses. Segundo a Caijing, em conjunto, esses sites oficiais não geram mais de cinco bilhões de yuans por ano.

“As empresas guardam ciosamente os seus dados, pois o risco de cedê-los é muito superior aos potenciais ganhos”, afirma Zhu Guohui. “Os dados vitais que uma empresa recolheu com enorme esforço podem ser facilmente duplicados se saírem dela.”

O diretor-executivo da GBDEX, Wang Canshou, reconhece que são muitos os que compram informações, mas são raros os que as fornecem. Para proteger os seus segredos comerciais, muitas empresas preferem não ceder os dados que possuem, e só raramente o fazem a título gratuito.

Concorrência feroz

Em junho de 2017, a conhecida empresa chinesa de entregas rápidas SF Express declarou guerra à Cainiao, a filial logística da Alibaba. A SF Express anunciou, de um momento para o outro, que ia fechar a interface de dados que tinha em conjunto com aquela empresa, acusando-a de tentar sufocá-la, obrigando-a a transferir os seus dados da QCloud para a AliCloud. Foi necessária a intervenção do serviço nacional de correio e de telecomunicações para pôr fim a essa guerra, com a promessa de as duas partes retomarem a transmissão mútua de dados.

Esta batalha trouxe à luz do dia a feroz concorrência existente entre empresas.

“Para uma empresa (SF Express) que vale 200 mil milhões de yuans na Bolsa, é impensável “dar sangue” gratuitamente a outra empresa (Cainiao)”, diz Zhao Xiaomin, especialista em entregas rápidas.

É normal que uma empresa tente proteger os seus dados; mas que os poderes públicos, que deveriam ter as suas informações à disposição de todos, procurem escondê-los, isso é absolutamente inaceitável.

Em 2016, o primeiro-ministro, Li Keqiang, revelou, num encontro de cúpula dedicado ao Big Data na China, que mais de 80% dos recursos nessa área são detidos pela Administração Pública. Em 2015, no âmbito de um plano de ação governamental para o desenvolvimento dos megadados, as autoridades afirmaram que desejavam “permitir o acesso aos recursos públicos”, a fim de facilitar a partilha de informações entre serviços administrativos. Pretendia-se, naquela altura, publicar os dados em posse do Governo num site acessível a todos os serviços, antes do final de 2018, e dar progressivamente acesso público de dados administrativos de dezenas de áreas, entre as quais o crédito, os transportes e a saúde, até ao final de 2020. Porém, a evolução dessas intenções está sendo muito mais lenta do que estava previsto.

Na realidade, tanto as empresas como as administrações querem aceder a esses dados sem, no entanto, partilharem os dados que detém. Zhu Guohui constata: “Em Guiyang, desenvolvemos esforços enormes. Os organismos públicos tentam dar o exemplo, mas há muitos ainda não resolvidos”.

Os sistemas de reconhecimento facial estão disseminados em toda a parte, como sucede, por exemplo, na fábrica Pegatron, em Xangai, onde se fabricam telefones celulares, inclusive os iPhone, da Apple.

O próprio órgão do Partido Comunista Chinês, o Renmín Ribao (Diário do Povo), lamenta que dados essenciais estejam trancados na gaveta, porque algumas autarquias não percebem como é importante compartilhar informações, chegando a considerar esses recursos como “propriedade privada”. Até plataformas governamentais já com alguma experiência são de difícil acesso.

Após uma investigação realizada em Foshan (província de Guangdong, no Sul do país), no centro de recursos em megadados do distrito de Nanhai, jornalistas do semanário cantonês Nanfang Zhoumo descobriram que apenas 22% dos dados propostos pela plataforma eram de acesso totalmente livre. E até mesmo os dados de acesso livre são difíceis de obter: em 2016. Wang Dengke, estudante do quarto ano da universidade, foi a Pequim com o objetivo de criar, com amigos colegas, uma base de dados públicos governamentais. Pretendia, por meio de um robô de indexação, reorganizar os dados de acesso livre para que pudessem ser comercializados. Rapidamente, porém, verificou que isso não era viável. De fato, a interface dos sites governamentais muda continuamente, o que impede o respectivo acesso. Acrescente-se que os dados descarregados desses sites se encontram, frequentemente, num formato incorreto, impedindo a sua exploração.

Graças ao forte apoio do Governo, a um fraco controle e à reduzida importância que a população atribui ao respeito pela sua vida privada, a China está no grupo da frente, a nível mundial, no Big Data.

Em termos de Big Data, entende-se por qualidade das informações o fato de serem correspondentes, precisas, completas e sempre válidas. Porém, um estudo realizado pela Faculdade de Ciências da Indústria de Harbin (no Nordeste do país) mostra que os dados relativos a Segurança Social são, frequentemente, impossíveis de compartilhar, enquanto que os sistemas dos serviços de segurança pública ou dos registros centrais oferecem dados redundantes ou incoerentes.

Como nos confidenciou Wang Xuan, encarregado do controle de qualidade na Big Data Primeton, os bancos possuem uma base de dados com centenas de milhares de clientes, cujas informações são redundantes, dando às vezes a impressão de que determinado indivíduo é titular de mais de mil contas.

Em todas as fases dessa cadeia, qualquer erro, mesmo que mínimo, implica defeitos de qualidade. Pode haver a “contaminação” por dados inúteis ou falsos durante a transferência, ou uma destruição involuntária de dados enquanto estão sendo tratados. Neste caso, estamos perante um problema de incapacidade de tratamento de dados.

“Observa-se um grande fosso tecnológico em matéria de Big Data, entre a China e o estrangeiro. As tecnologias provém todas de grandes companhias estrangeiras, como a Google, entre outras”, explicou aos jornalistas lLi Guanggan, diretor do Serviço de Investigação de Informações no Centro de Estudos e Desenvolvimento do Governo. Na realidade, o modelo econômico da China está mais avançado do que o seu nível tecnológico.

Ora, se a qualidade dos dados não é garantida, serão sólidas as conclusões que tiramos a partir desses mesmos dados?

Ausência de regulação

O mercado negro é outra nódoa nesse panorama. Por enquanto, a China não dispõe de qualquer organismo regulador de intercâmbios do Big Data de uma região ou de um setor industrial para outra região ou outro setor industrial. A legislação relativa à propriedade dos dados é muito vaga. “A ausência de normas e de legislação no domínio do comércio dos megadados restringe as possibilidades de desenvolvimento nessa área”, observa Zhu Guohui que, várias vezes, referiu a necessidade de se “evitar riscos” (subentende-se por risco a violação da confidencialidade dos dados), durante a entrevista.

NA EXPECTATIVA DOS TALENTOS – Em Guizhou, uma das províncias mais pobres do Sul da China, constroem-se estradas e, sobretudo, centros de dados. “As autoridades locais são encorajadas a apoiar os megadados desde 2015, ano em que essa campanha foi assumida como estratégia nacional, conta o jornal South China Morning Post. As motivações disso são também econômicas, pois essas autoridades recebem subsídios do Governo central e se beneficiam de incentivos fiscais que visam estimular o crescimento local.” Porém, apesar dos 89 bilhões de euros investidos no ano passado nas infraestruturas de Guizhou, esta região montanhosa mal consegue atrair quem possa pôr em andamento a nova economia digital. “As medidas lançadas pela província de Guizhou são condição prévia para as atividades do Big Data – boas infraestruturas, benefícios fiscais, subsídios concedidos a quem queira se estabelecer na região, explica Luo Lei, cofundador da empresa People Et Data, paga pelo Governo para ajudar a recolher informações pessoais sobre os trabalhadores imigrados e facilitar o pagamento dos respetivos salários por transferência bancária. “Mas se não conseguirmos atrair um número de talentos suficiente para o próximo biênio, essa política não poderá ser bem-sucedida.” Para Mark Creeven, professor associado na Universidade de Zhejiang, o problema não se limita nem a esta província remota nem sequer à China. “A oferta de talentos nessa área fica muito aquém da procura. Estamos, provavelmente, perante um dos maiores estrangulamentos no que respeita ao desenvolvimento das tecnologias e da inovação.” A dúvida, agora, consiste em saber como a China irá resolver essa questão…

Em maio de 2017. diversos responsáveis da Datatang foram interrogados pela polícia, depois de terem revelado informação confidencial dos seus clientes; o valor da empresa na Bolsa caiu de 2,1 mil milhões de yuans para 700 milhões (de 271 para 90,5 milhões de euros). O caso deixou preocupados muitos outros profissionais do setor, que se apressaram a organizar os seus serviços. Quanto à GBDEX, passou a sua atividade principal de recolha para a análise de dados, em grande medida para evitar ser acusada de não respeitar as obrigações de confidencialidade.

Além disso, os dados em bruto são os mais apetecíveis para os compradores, pois não só dão informações pessoais exatas como estas podem ser utilizadas ilimitadamente, o que propiciou o aparecimento do mercado negro. “Quanto mais estejam em bruto mais valem os dados”, explica Zhu Guohui.

O estudo da Caijing mostra que a maior parte das transações realiza-se no mercado negro. Segundo estatísticas incompletas, 5,53 bilhões milhões de dados pessoais terão sido divulgados, ou seja, uma média de quatro por cada cidadão chinês. Oitenta por cento provém de “toupeiras” dentro do setor e apenas 20% são obtidos por hackers.

No mercado negro, é possível comprar informações presentes no cartão de cidadão, ou relativos a créditos contraídas, a preços bastante competitivos: dez vezes menos do que o preço de compra, através de vias oficiais de dados de reconhecimento facial (vendidos à unidade, por 0,10 yuans).

Frequentemente, os meios de comunicação informam que dados pessoais estão circulando no mercado negro, mas ninguém parece importar-se muito com tal fato. Contudo, em agosto de 2016, Xu Yuyu, uma jovem estudante de 18 anos, morreu de ataque cardíaco, depois de lhe terem extorquido 9900 yuans (1280 euros), numa fraude via telefone, para uma taxa de inscrição na universidade. O inquérito demonstrou que o ladrão tinha comprado, ilegalmente, 100 mil dados pessoais sobre os estudantes admitidos na faculdade.

Basta não termos cuidado e o Big Data consegue esboçar um retrato aproximado de nós no mundo virtual e prever os nossos futuros movimentos. Depois, faremos parte de um sistema de classificação por categorias.

A trágica história de Xu Yuyu permitiu à população tomar consciência da importância da segurança dos dados, e levantou outra pergunta mais delicada: as informações que geramos nos pertencem?

Como garantir a confidencialidade das informações pessoais recolhidas pelas autoridades e pelas empresas? A lei chinesa sobre a segurança na internet, que entrou em vigor em junho de 2017, visa proteger as informações pessoais, em particular nomes, datas de nascimento, números de carta de identidade, residências, números de telefone, etc., mas, na era do Big Data, o seu campo de ação parece muito reduzido.

Proteção da vida privada

Na opinião de Li Yang, professora assistente na Faculdade de Direito da Universidade Central das Minorias de Pequim, o Direito chinês prevê a proteção do direito à vida privada mas, com o Big Data, é cada vez mais difícil definir o que são “dados pessoais”. Os hábitos de consumo de uma pessoa ou a frequência com que utiliza um ônibus ou determinada linha de metrô são ou não informações pessoais?

Em 14 de abril de 2016, o Parlamento Europeu aprovou, após quatro anos de negociações, o Regulamento Geral de Proteção de Dados, que entrou em vigor em 25 de maio de 2018. A China ainda não adotou a legislação. O artigo 127 dos princípios gerais do Código Civil adotados em março de 2017 estabelece, de forma um tanto vaga: “A lei prevê normas que devem ser respeitadas relativas à proteção de dados e a bens virtuais”; no entanto, não se define o conceito de “dado” nem se especifica claramente quem é o seu proprietário. Para alguns juristas, os utilizadores são meros produtores de dados, que não tem qualquer valor se não forem explorados pelas plataformas, às quais cabe, portanto, a propriedade dos mesmos. Ressalve-se que as plataformas têm a obrigação de proteger a confidencialidade dos utilizadores.

Os internautas insurgem-se contra esta interpretação: mesmo tratados, os dados são sempre propriedade de uma pessoa. Se um comercial se servir dos meus dados para melhorar um novo produto, não é lógico que eu receba parte dos lucros? E, em termos mais gerais, não será normal eu ter o direito de saber como são utilizados os meus dados?

O ASSUSTADOR CRÉDITO SOCIAL – As experiências de “crédito social” que a China desenvolve em diversas cidades parecem um episódio da série distópica Black Mirror. Segundo as suas ações, os cidadãos recebem pontos; de acordo com a sua pontuação terão acesso a diversas vantagens, entre as quais uma maior facilidade de se obter empréstimos bancários.  Também as relações sociais de cada um podem influir no resultado. A revista The Atlantic apresenta o seguinte exemplo: “Está vendo aquele seu amigo que é contra a política do Governo? Ele Frequentá-lo pode baixar a sua classificação.” O sistema prevê uma “lista negra” em que já figuram (contra a sua vontade) 170 mil pretensos maus pagadores. Segundo a Foreign Policy, quem consta desta lista fica impedido de comprar bilhetes de avião ou de trem de alta velocidade e, assim, vê-se forçado a pagar as dívidas. O jornalista Liu Hu é um dos já sofreram na própria pele os efeitos do sistema. Condenado por difamação por causa de um artigo publicado em 2013, no qual denunciava atos de corrupção, foi recentemente impedido de comprar um bilhete de avião através de um aplicativo e recebeu um aviso de que se encontrava na lista negra. Liu Hu, até o momento, não conseguiu que seu nome fosse retirado da lista.

 Claro que, na China de hoje, nem o Governo nem as empresas têm a intenção de ceder aos internautas o direito de propriedade dos seus dados digitais.

Big Brother chinês

No romance 1984, o escritor britânico George Orwell descreveu uma sociedade Totalitária, na qual o Big Brother observa permanentemente as pessoas, através de “teletelas” – os seus olhos. Devido à grande sensibilidade e onipresença, estes aparelhos vigiavam permanentemente os mínimos gestos ou frases de cada pessoa.

O Big Data está entrando em nossas vidas privadas de modo mais sub-reptício, já que não estamos sempre a pensar: “Big Brother is watching you.” No entanto, ele está vendo o tempo todo a forma como nos vestimos, o que gostamos de comer, onde vivemos, para onde vamos – e está vendo também quem são os nossos entes mais queridos.

O trajeto que fazemos quotidianamente quando saímos de casa e o meio de transporte que usamos são dados gravados; o nosso histórico de navegação na internet e as mensagens que publicamos são dados que permanecem gravados, bem como a identidade dos amigos e o nome das lojas que frequentamos. Basta não termos cuidado e o Big Data consegue esboçar um retrato aproximado de nós no mundo virtual e prever os nossos futuros movimentos. Depois, faremos parte de um sistema de classificação e a partir dele nos tornaremos muito obedientes, e depois disso já nem será mais necessária a intervenção do Big Brother.

“Alguém que vá para o trabalho de Mercedes, todos os dias, terá menos pontos do que eu, que utilizo bicicleta compartilhada. Alguém que viva sozinho numa casa enorme terá menos pontos do que eu, que alugo um apartamento minúsculo para toda a família. Deste modo, ao fim de dez anos, terei acumulado pontos suficientes para comprar uma casa, enquanto a outra pessoa terá de continuar a acumular pontos durante mais anos, ate’ porque quererá comprar uma casa muito maior. Se atirarmos pela janela do carro uma garrafa de água mineral vazia, perdemos dez pontos. Como as ruas não são largas, os transportes públicos têm prioridade: se usarmos viatura própria, estaremos sempre esbarrando em obstáculos. Na primavera, todos irão voluntariamente plantar árvores: quem não o fizer perderá cem pontos por ano.”

Não estamos perante um filme ou um romance; o texto acima é trecho do discurso de um responsável do comité de gestão da nova zona de Xiongan (zona econômica especial) na província de Hubei. Um mês depois desta entrevista, em outubro de 2017, o grupo Alibaba anunciou que tinha celebrado um acordo de cooperação estratégica com a localidade, comprometendo-se a “utilizar as potencialidades das tecnologias mais avançadas e de recursos inovadores para tornar o novo distrito de Xiongan um marco emblemático da cidade do futuro e um modelo na China”.

Em 2014, o Governo anunciou que iria criar, até 2020, uma rede de “crédito social” ensaiada em varias localidades do país). 0 programa prevê a atribuição de pontos tanto aos privados como as empresas ou a poderes públicos, a par de um sistema de desempenho “bonus/malus”, se os compromissos de credito forem ou não respeitados; desse modo, como espera o primeiro ministro Li Keqiang, “os maus pagadores dificilmente progredirão e os bons pagadores terão campo livre”.

E como será efetuada a avaliação? Em outubro passado, a revista Wired publicou um longo artigo que apresentava o sistema de avaliação “Crédito Sésamo” (ou Zhima Credit), uma filial do Alibaba que constitui uma das maiores plataformas de empréstimos a privados na China. Um internauta é rapidamente avaliado em cinco domínios: o seu histórico como mutuário, a capacidade de respeitar os compromissos, as características pessoais, as preferências e o comportamento, e as relações sociais. Todos os elementos são coligidos pelo Alibaba quando utilizamos os serviços das suas filiais Taobao, Tmall (site comercial) ou Alipay.

Claro que não foram apenas os gigantes da alta tecnologia que se deram conta da enorme evolução que os megadados permitem: em 8 de dezembro passado, o Politburo do Partido Comunista Chinês dedicou a sua segunda sessão plenária ao assunto.

Xi Jinping, cujas ambições são quase ilimitadas, exortou os dirigentes a acompanharem a evolução do Big Data e a sua influência no desenvolvimento econômico-social e a facilitarem a partilha dos recursos em megadados, a fim de se acelerar o processo de edificação de uma China digital.

Não será fácil, todavia, atingir os objetivos propostos por Xi Jinping. Enquanto os obstáculos que dificultam o intercâmbio de dados pelas empresas e os poderes públicos, e até mesmo pelos diversos serviços do Estado, não tiverem sido ultrapassados, será difícil pôr em prática um sistema de crédito social eficaz.

Então, como derrubar estes “muros”? No dia 24 de janeiro, Ye Zhenzhen, diretor do Renmimvang (site do jornal Diário do Povo), propôs uma solução: “Os dados serão controlados pelo Partido. “Tendo em conta que os megadados são tão importantes como as “espingardas” (as Forças Armadas) ou “a caneta” (a propaganda), ele entende ser impossível concretizar uma grande plataforma de partilha de dados sem a intervenção do Partido para controlar os dados ou sem a Administração Pública para derrubar os “muros” atuais. Estas declarações foram muito bem recebidas pelo Politburo. Irá o “Big Data do Partido” avançar em breve? Veremos, dentro de pouco tempo, surgir esse monstro marinho? Estas são algumas perguntas que não ficarão sem resposta nos próximos anos.