Doris Lessing, prêmio Nobel de Literatura de 2007, passou sua juventude no Zimbábue, no leste da África. Novelista e ensaísta de renome mundial, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 2007. Pouco depois, em Londres, deu uma conferência intitulada “Como não ganhar o prêmio Nobel”, onde descreve aspectos de uma sua recente visita ao país natal e denuncia nosso mundo desencantado e indiferente. Transcrevo abaixo um belo trecho da sua fala.
Por Doris Lessing
Parada na soleira da porta, olho, em meio à nuvem de poeira que passa, na direção de onde ainda restam florestas em pé, pelo menos é o que me disseram. Ontem, percorri de carro uns bons quilômetros de troncos de árvores cortadas e de restos carbonizados por queimadas, exatamente lá onde, em 1956, existia a floresta mais magnífica que tive a oportunidade de conhecer. Inteiramente destruída. Na África, as pessoas precisam comer, precisam encontrar combustível para suas fogueiras.
Tudo isso acontece no nordeste do Zimbábue. Visito um amigo que é professor numa escola de Londres. Ele está lá para “ajudar a África”, como se costuma dizer. Possui uma alma nobre e idealista, e aproveita suas férias para trabalhar com populações carentes; o que descobriu aqui, nesta escola, o chocou a ponto de lhe provocar uma depressão da qual teve dificuldade para sair. Esta escola em nada é diferente das demais escolas abertas no país após a independência. Ela consiste de quatro grandes cubos de alvenaria, plantados lado a lado diretamente na poeira, um dois três quatro, com um arremedo de sala ao fundo, a biblioteca. Essas salas de aula possuem quadros-negros, mas meu amigo guarda os bastões de giz no bolso, para que não sejam roubados. Não existe atlas nem globo terrestre no estabelecimento; não existem manuais escolares nem cadernos ou canetas esferográficas; a biblioteca não contém livros que os alunos gostariam de ler, apenas enormes tratados produzidos por universidades americanas, difíceis até de manipular, e obras refugadas pelas bibliotecas dos brancos, romances policiais ou títulos tais como Um fim-de-semana em Paris, ou Felicity encontra o amor…
Enquanto converso com meu amigo em seu quarto, pessoas entram timidamente e todos, sem exceção, mendigam livros. “Por favor, mandem-nos alguns livros de Londres quando vocês voltarem para lá.”
Duvido que a maior parte desses estudantes irá ganhar prêmios de literatura.
Permaneci alguns dias ali. A poeira voava o tempo todo, não havia água porque as bombas estavam quebradas e as mulheres voltaram a buscar água do rio.
Outro professor idealista vindo da Inglaterra experimentava um certo desgosto após ter visto a que esta “escola” parecia.
No último dia, era já o final do trimestre, os moradores da aldeia abateram uma cabra; ela foi cortada numa porção de pedaços e posta para cozinhar numa grande panela. Eis o banquete tão esperado de final de trimestre: um picadinho de cabra com grãos de semolina. Quando a festa estava no auge, peguei a estrada num carro, em direção ao aeroporto da capital, Harare, atravessando de novo os restos carbonizados da antiga floresta.
Duvido que a maioria desses estudantes irá ganhar prêmios de literatura.
No dia seguinte, já estou numa escola do norte de Londres, uma excelente escola, de nome bem conhecido. É uma escola para rapazes. Belos edifícios, belos jardins.
Uma vez por semana, esses alunos recebem a visita de uma personalidade. Ela pode ser o pai, um parente ou até mesmo a mãe de um dos alunos. Mas a vinda de uma celebridade também é coisa normal para eles.
No entanto, a escola em meio à nuvem de poeira móvel do nordeste do Zimbábue continua presente na minha memória. Observo esses rostos levemente curiosos e tento lhes contar o que vi na semana anterior. […] Tenho certeza de que todos já viveram o momento no qual as faces que olhamos tornam-se inexpressivas. Quando seus ouvintes não entendem aquilo que você diz: neles, nenhuma imagem mental corresponde àquilo que você está tentando explicar. Nesse caso, nenhuma imagem de uma escola velada por nuvens de poeira, onde falta água, onde uma cabra recém-abatida e transformada em picadinho constitui a grande atração da festa de final de trimestre.
Será realmente impossível para eles imaginar uma pobreza nua a tal ponto?
Faço o melhor que posso, trata-se de pessoas bem educadas.
Estou certa de que, nesse grupo de rapazes, alguns ganharão prêmios.
Depois, acabou. Reunida com os professores, pergunto, como sempre, se a biblioteca funciona, se os alunos lêem. E aqui, nesta escola de privilegiados, ouço aquilo que sempre ouço quando visito escolas ou até mesmo universidades: “Você sabe o que acontece. Muitos dos nossos alunos nunca leram um livro, e a biblioteca funciona apenas pela metade.”
“Você sabe o que acontece”. Sim, claro, sabemos todos muito bem o que acontece.
Nos encontramos no interior de uma “cultura de fragmentação”, na qual nossas certezas que datam de apenas algumas décadas são contestadas, e onde é freqüente que rapazes e moças que se beneficiaram de anos e anos de estudos não saibam nada do mundo, nunca tenham lido nada, conheçam apenas uma ou outra especialidade, a dos computadores, por exemplo.
Somos seres desencantados, nós no nosso mundo – um mundo tão ameaçado. Somos os campeões da ironia e do cinismo. Hesitamos em usar certas palavras e certas idéias, a tal ponto elas foram usadas e roídas até o osso. Mas por que não reabilitar certas palavras que perderam o seu poder de expressão?
Dispomos de uma mina de ouro – um tesouro – em termos de literatura, que remonta aos antigos egípcios, aos gregos e romanos. Tudo está aí, essa profusão literária, pronta para ser continuamente redescoberta por qualquer um que tenha a oportunidade de lhe lançar um olhar. Um tesouro. Imaginem se isso nunca tivesse existido. Como seríamos vazios, pobres!
Recebemos de herança todo um patrimônio de línguas, de poemas, de histórias, e todo esse acervo não corre o risco de se esgotar. Ele está aí, agora e sempre. Dispomos de um patrimônio de relatos, de contos, transmitidos pelos antigos contadores de histórias – conhecemos os nomes de alguns, mas não de todos eles. Essa linhagem de contadores de histórias remonta a uma clareira no meio da floresta onde queima um grande fogo e onde os antigos xamãs dançam e cantam, pois nosso patrimônio de histórias nasceu no fogo, na magia, no mundo dos espíritos. E é ainda lá que ele se conserva até hoje.
Interrogue qualquer narrador moderno, e ele lhe dirá que existe sempre um momento no qual ele é tocado pelo fogo daquilo que gostamos de chamar de inspiração, entusiasmo, e isso remonta ao surgimento da nossa espécie, ao fogo, ao gelo e aos grandes ventos que nos modelaram, a nós e ao nosso mundo.
O contador de histórias permanece no fundo de cada um de nós, o “fazedor de histórias” que se esconde em nós. Suponhamos que nosso mundo seja roído pela guerra, pelos horrores que todos nós podemos facilmente imaginar. Suponhamos que inundações submerjam nossas aglomerações urbanas, que o nível dos mares suba… O narrador estará sempre lá, pois é o nosso imaginário que nos modela, que nos faz viver, que nos cria, para o bem ou para o mal. São nossas histórias, o narrador de nossas histórias, que nos recriam – que nos animam – quando estamos despedaçados, moribundos, destruídos. É o narrador, o fazedor de sonhos, o construtor de mitos, que é nossa fênix, aquilo que somos no melhor de nós mesmos, no cerne da nossa criatividade.
Aquela pobre mulher africana que caminha na poeira sonhando em poder educar seus filhos, cremos ser melhores do que ela – nós, empanturrados de comida, com nossos armários repletos de roupas, nós que sufocamos sob o peso do supérfluo?
Estou totalmente convencida de que é aquela mulher africana e todas as outras mulheres que me falaram de livros e de educação, embora não tivessem comido nada havia três dias, que ainda podem nos definir no momento presente.
Originally posted 2010-06-21 19:39:12.
Magnífico!