Com um escorregador que nos faz deslizar de uma altura de dez andares e camarotes com janelas virtuais, até nos esquecemos que estamos no maior navio de cruzeiro do mundo — ou sequer num barco. O Harmony of the Seas é uma monstruosidade, mas não destituída de um sentido futurista. Confira a opinião muito bem humorada do jornalista inglês Sam Nollasman que participou da viagem inaugural do Harmony of the Seas.
Por: Sam Nollasman. Fonte: Jornal The Guardian, Londres
Sinto-me um adolescente bêbado no interior de um enorme shopping center. Não sou nada disso, nem estou em um shopping, mas é assim que me sinto. Estou, de fato, a bordo de um navio de cruzeiro. 0 maior navio de cruzeiro do mundo, para um passeio inaugural de duas noites, desde o porto de Southampton até a metade do Canal da Mancha, ida e volta.
0 nome dele é Harmony of the Seas, da Royal Caribbean, um enorme navio, um bolo de casamento de 18 camadas que altera seriamente o horizonte e a população onde quer que fundeie. É provável que vocês já tenham visto os números: um bilhão de dólares foram gastos para a sua construção, 362 metros de comprimento, 226.963 toneladas e 23 piscinas, incluindo piscinas de ondas e tobogãs, e 20 restaurantes.
Há um teatro, uma pista de patinação no gelo, um casino, um ginásio esportivo, um spa, uma creche, um hospital, uma cadeia, um necrotério e muito mais. 0 meu dado favorito é que 15 mil ovos são consumidos a bordo todos os dias. Cerca de 2100 tripulantes cuidam dos 6780 passageiros, num total de 8890 pessoas — que é mais do que a população da cidade costeira de Ventnor, na llha de Wight, por onde podemos ou não passar.
Agora estou num elevador. Passo grande parte do cruzeiro dentro do navio ou à espera de um dos 24 elevadores para passageiros nele existentes. Ou a caminhar pelos longos corredores cinzentos. Tão longos que parecem saídos de um sonho bizarro, com portas numeradas de cada lado e, a intervalos regulares, uma pessoa afável proveniente do mundo “subdesenvolvido” (Filipinas, Peru, México, Jamaica, Ilhas Maurício) passa com um carrinho de limpeza e uma saudação calorosa.
Central Park com árvores e tudo
Finalmente, o meu camarote, ou melhor, o nosso camarote. Estou com a minha mulher e o nosso filho de quatro anos. Com uma janela e uma varanda, abertas ao exterior, e ao mar! Mas não se preocupem se não puderem pagar um camarote com janela para o exterior, ou nem sequer uma vista para o Central Park (a zona de restaurantes do centro comercial da nave, com árvores reais); não há problema, porque todos os camarotes interiores têm janelas e varandas virtuais. Trata-se, na verdade, de uma tela de alta definição onde é projetada a vista do mar, com imagens em tempo real, tomadas por uma câmera na parte exterior do navio, por isso é quase como ter uma varanda exterior. Com a vantagem adicional de que, se ficar farto de tudo e tiver vontade de pular, não pode; até hoje, ao que se saiba, nunca ninguém se afogou em pixels.
Saltar ao mar, como o norovírus, é coisa típica de cruzeiros. Mas não vamos dar asas aos pessimismos. O meu amigo John Vidal já escreveu sobre os estragos ambientais produzidos pelos navios de cruzeiro. Dizemos: que se lixe o planeta, estamos aqui para nos divertirmos.
O tempo no meio do Canal da Mancha não ajuda, é cinzento e chuvoso. Hoje não é difícil arranjar uma espreguiçadeira; difícil é não ser arrancado dela pelo vento. Todas essas piscinas e tobogãs, o minigolfe, etc, também não parecem tão tentadores sob o mau tempo. Definitivamente, o Canal da Mancha não é o território ideal para cruzeiros. Em breve, o Harmony of the Seas rumará para o paraíso dos cruzeiros, o mar Mediterrâneo.
O que? A grande atração do navio, o Ultimate Abyss (Abismo último), está fechada? Aparentemente, não funciona muito bem em tempo chuvoso: as pessoas ?cam coladas nas paredes internas do enorme tubo. Não há problema, experimentei-o ainda antes de partirmos de Southampton, antes da chuva começar.
O que é afinal o Ultimate Abyss? Um grande tubo roxo que desce em espiral de uma altura de dez andares. Como um grande intestino, até ir para a extremidade traseira do navio e despejar seu conteúdo. Entramos pela extremidade superior, lançamo-nos nela e saímos na parte inferior; como se fôssemos um excremento humano, mas de trânsito muito mais rápido.
Por que estou novamente pensando no norovírus? Na verdade, descer naquele tubo é como experimentar um cruzamento entre o suicídio e o norovírus. Ambos igualmente excitantes e preocupantes.
Encontramos outras coisas para desfrutar. A cama é muito confortável. Os tripulantes são absolutamente adoráveis e extremamente alegres, tendo em conta que depois de trocar lençóis, limpar sanitários, aspirar a poeira dos corredores infinitos, atender os passageiros, etc, eles descem para as suas cabines sem janelas (nem mesmo as virtuais) nas verdadeiras entranhas do navio, abaixo da linha d’água. E, muitas vezes, permanecem longe das suas famílias seis meses seguidos.
Quanto mais navio, menos navio
0 Harmony of the Seas é um navio de classe Oasis 3, construído pela STX France SA. Sua montagem durou dois anos. A primeira impressão que ele causa é de confusão: Parece que quanto maior é um navio, menos se parece com um navio.
De fato, temos mesmo de ?car bêbados. No primeiro bar em que entramos, uma senhora fardada fecha a porta atrás de nós e começamos a subir. Todo o bar começa a subir. Que diabo é isto? Por fim, saímos do bar-elevador e entramos num outro bar-elevador. Talvez pudéssemos ter adivinhado, esse bar chama-se Rising Tide (maré enchente) e ele sobe e desce no vão entre o centro comercial e o Central Park. 0 Bionic Bar tem uma equipe de robôs – menos simpáticos do que o restante pessoal – mas todos os servidores, humanos ou robôs, estão sempre prontos para posar com os passageiros em intermináveis selfies.
Comida italiana e musicais
Vamos ver o que acontece numa festa chamada 90’s Street Party Totally Awesome (festa totalmente espantosa na rua 90). O barulho é infernal. E participamos de um espetáculo no gelo, de uma dança em escorregador (adoraria ver isso durante uma tempestade).
E fomos parar no Jamie, o restaurante italiano, onde comemos (bem). E mais tarde, no Royal Theatre, de 1400 lugares, onde cantamos fazendo coro aos atores do musical Grease, encenado a bordo ao vivo e em cores.
Embora, à primeira vista o Harmony of the Seas pareça uma monstruosidade, ele é uma maravilha da engenharia e da hotelaria para grandes massas.
Agora, já mais acostumados às dimensões gigantes do navio, até estamos gostando bastante das aventuras a bordo. Mesmo tendo, todos nós, esquecido completamente de que estamos a bordo de um navio.
E começo a pensar que o objetivo desse navio-monstro não é apenas comercial. Algo se esconde por trás dessas janelas e terraços virtuais, desses robôs-garções, de toda essa tecnologia desenfreada. E a imaginação delira: não será ele um experimento, um dos primeiros de uma série de outros “navios” nos quais, graças à tecnologia, fará sempre um bom tempo virtual, um sol virtual brilhará sem nunca se esconder atrás de nuvens… Uma espécie de bolha, uma antevisão do futuro, não acham? Tudo virtual: céus perfeitos, robôs gentis, consciências limpas e felizes.
(*) Mas não posso deixar de dizer que nossa viagem de duas noites no Harmony of the Seas foi oferecida pela Royal Caribbean. Um cruzeiro de sete noites pelo Mediterrâneo Ocidental custa a partir de 1300 euros, tudo incluído, para um quarto interior. O cruzeiro Harmony of the Seas parte de Barcelona, percorrendo um itinerário pelo Mediterrâneo Ocidental, com paradas previstas em Palma de Majorca, Marselha, Pisa (com visita a Florença), Roma e Nápoles. Mais informações: Consulte a página da Royal Caribbean: www.royalcaribbean1.pt para saber qual a programação dos cruzeiros para as próximas temporadas. América Latina está na lista.